Muitos podem recordar a imagem de Abel Braga com o rosto avermelhado, olhos arregalados, mascando chiclete e visivelmente irritado com a performance do time, a arbitragem ou o resultado de uma partida. Essa imagem é, sem dúvida, uma das mais conhecidas do ex-treinador de 73 anos. No entanto, ela não reflete completamente a verdadeira essência de um homem que, ao longo de sua carreira, tem se dedicado a apoiar jogadores e clubes, sempre com calma e sabedoria, mesmo que esconda suas próprias dores.
O documentário “ABEL, O GRANDE”, uma produção original dos canais ESPN e Disney+, oferece aos fãs de esportes uma visão mais profunda de Abel. Escrito por Marcelo Gomes, com a direção de fotografia de Evandro Marcel Fontana e Marcelo D’Sants, e edição de Thales Rangel e Igor Machado, o especial é uma oportunidade singular para explorar os bastidores de conquistas memoráveis – como a vitória na CONMEBOL Libertadores contra o São Paulo e no Mundial de Clubes frente ao Barcelona, ambas em 2006 pelo Internacional. O documentário também destaca suas experiências em suas duas passagens pelo Flamengo e sua idolatria no Fluminense, além da emocionante narrativa sobre a perda de seu filho caçula, João Pedro.
A produção contém depoimentos de Abel, de seus familiares, jornalistas como José Carlos Araújo “Garotinho” e Renata Fan, jogadores renomados como Zico, Júnior, D’Alessandro e Deco, e dirigentes como Fernando Carvalho e Rodrigo Caetano. O documentário está disponível em quatro episódios no Disney+ e será exibido em dois episódios nos canais ESPN: o primeiro neste sábado (13) às 22h (horário de Brasília) e o segundo no dia 20, também às 22h.
A seguir, apresentamos duas histórias emocionantes que fazem parte do documentário.
Abel Braga irritado durante clássico Grenal pelo Brasilerão de 2014 – Foto: Lucas Uebel/Getty Images
‘PEGUEI ELE PELO PESCOÇO’
O Abel sereno fora de campo e o Abel explosivo durante os jogos parecem coexistir de maneira quase harmônica. Contudo, houve momentos em sua trajetória em que ele foi testado ao limite, levando-o a reações exageradas.
Um desses episódios se deu durante seus tempos no Vasco, onde jogava como zagueiro ao lado de Orlando Lelé, Geraldo e Marco Antônio, formando um quarteto que foi chamado de “a barreira do inferno”.
Sob a direção de Orlando Fantoni, o grupo ganhou notoriedade nacional em 1977, quando o Vasco conquistou o campeonato carioca, sofrendo apenas cinco gols e alcançando 16 partidas consecutivas sem ser vazado. Eles não eram maldosos, mas encaravam os craques da época com força e técnica.
“De todos ali, o mais complicado era o Geraldo. O time do Vasco era muito bom. Jogamos duas finais, uma em 1977, vencida pelo Vasco, e outra em 1978, que o Flamengo ganhou. O Abel se destacou tanto que foi para a Copa do Mundo de 1978”, relatou Zico.
“Era a barreira do inferno mesmo [risos]. Eles formavam uma linha de defesa e mostravam aos adversários que, para trás da linha, era o inferno. Se passasse, levava. Mas era mais uma tática de intimidação do que violência”, comentou o ex-volante Zé Mário.
Abel explicou: “Precisávamos criar uma situação de medo. O Orlando não era gentil. Eu não era, Geraldo também não. Nós falávamos: ‘Vamos criar algo que cause terror’. Víamos da intermediária para trás e avisávamos ao goleiro: ‘Se passarem daqui, é o fim’. O Vasco ficou um turno inteiro sem sofrer gols”.
Entretanto, houve uma ocasião em que Abel ultrapassou os limites.
“Tenho orgulho de nunca ter tirado um jogador de campo, mas uma vez fiz isso. Um jogador do Bangu me deu uma pancada em São Januário. Então, comentei: ‘Quem dá, esquece… mas há uma volta’. No ano seguinte, em um lance semelhante, dei uma pegada forte nele. Ele saiu de maca. Nunca fui de machucar adversários, mas este eu machuquei porque me deixou furioso”, compartilhou Abel.
Outro momento marcante ocorreu no início de sua carreira como técnico, no Botafogo nos anos 80.
“Meu primeiro ano como treinador do Botafogo, em um jogo contra o América-RJ no Maracanã, estava 0 a 0. Elói, um grande jogador, ficou o primeiro tempo todo na direita. Comecei o segundo e perguntei: ‘O que você está fazendo aí? Precisamos ganhar’. Com 15 minutos, tirei Elói. Ele saiu, desceu para o vestiário, e falou: ‘Vai se danar…’. Isso me irritou. Quando acabou o jogo, desci sem esperar o apito do árbitro, procurando-o. Ele estava ajeitando o cabelo. Bati nas costas dele, virei-o e disse: ‘Agora você vai mandar em mim’. Aí alguém que não vi falou: ‘Que isso, Abel?’. Era um amigo meu e empresário do Elói”, contou Abel.
SALVADOR DA MACACA
Abel é uma figura icônica no Internacional e no Fluminense, onde conquistou os principais títulos da carreira e alcançou marcas expressivas. Ele é o recordista em partidas pelo Internacional (340, com cinco títulos) e o segundo que mais atuou pelo Fluminense (352, com oito títulos).
Contudo, há um terceiro clube que ocupa um espaço especial em seu coração: a Ponte Preta.
Em 2003, em sua única passagem pela equipe de Campinas, Abel tinha como missão inicial evitar o rebaixamento da Ponte.
Naquela época, ele não era ainda o multicampeão que viria a ser, mas aceitou o desafio e enfrentou um cenário difícil dentro e fora de campo.
“Entrei na Ponte determinado a me inserir no mercado de São Paulo. Porém, enfrentei muitos problemas. Até coloquei jovens para jogar que nunca haviam treinado no Moisés Lucarelli”, lembrou Abel.
Abel Braga abre os braços irritado durante jogo da Ponte Preta, em Campinas – Foto: GazetaPress
“Ele treinava de manhã, e à tarde já eram outros jogadores, pois muitos iam embora e entravam com ações judiciais por conta dos atrasos salariais”, explicou Marco Antonio Eberlin, ex-presencial da Ponte.
“Tenho certeza de que ele usou seu próprio dinheiro para ajudar, não para pagar salários, mas para apoiar no dia a dia. Abel tem um coração enorme. Havia atrasos nos pagamentos dos funcionários, e em reunião entre jogadores e funcionários, todos concordaram que lutariam para evitar o rebaixamento. Acredito que Abel até tirou dinheiro do bolso para ajudar”, complementou Eberlin, que na época não era presidente.
Leomir Souza, um amigo e assistente técnico, corroborou: “É verdade! A Ponte passava por uma situação financeira muito difícil, e Abel se solidarizou. Jogadores não tinham dinheiro para pagar a passagem do ônibus”.
Graças ao esforço coletivo, a Ponte evitou o rebaixamento, vencendo o Fortaleza por 2 a 0 na última rodada, alcançando 50 pontos.
Até hoje, a torcida tem uma gratidão enorme por Abel.
Fonte: ESPN