Wilson Luiz Seneme sempre sonhou em brilhar no futebol. Porém, após quase dez anos jogando, sua trajetória como atleta não trouxe o retorno esperado e ele decidiu mudar de foco.
Começou nas categorias de base do Guarani, jogou no União São João junto com o ex-lateral Roberto Carlos e passou por diversos clubes menores em São Paulo e Paraná. Aos 25 anos, optou por deixar a carreira de jogador e se tornou educador físico.
A arbitragem surgiu como uma oportunidade extra aos finais de semana, permitindo que ele permanecesse próximo do futebol, e foi exatamente nesse momento que sua vida deu uma reviravolta.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Após quase duas décadas como um dos principais árbitros do Brasil e da América do Sul, e carregando o escudo da Fifa, Wilson Seneme assumiu cargos de gestão na Conmebol, tornou-se consultor da Fifa e, mais recentemente, foi chefe da Comissão de Arbitragem da CBF, posição da qual foi demitido em fevereiro deste ano. Essa saída ainda a incomoda.
– Estou muito frustrado por ter sido interrompido no meio de um projeto. Recebi garantias de apoio e não esperava essa reviravolta. Ter trabalhado na Conmebol me destacou e isso despertou o interesse da CBF. Apresentei meu projeto e as condições necessárias, e aprendi que há que se formalizar tudo. Sou grato por minha trajetória, mas essa interrupção foi decepcionante.
– Acredito que a arbitragem precisa ser democratizada. Não é justo que uma instituição espere que todos conheçam seus critérios. É necessário o apoio de instituições privadas para ajudar a divulgar e esclarecer as regras do jogo – ele afirmou.
Pioneiro na implementação do VAR no futebol sul-americano, Seneme defende a ferramenta contra críticas. Ele ressalta que os árbitros brasileiros são tão competentes quanto os da Premier League e que a tecnologia é essencial para melhorar o desempenho dos árbitros em campo.
– O VAR é benéfico, não prejudicial. Analisando os dados, é claro que os benefícios superam os desafios. Na Premier League, muitos criticam o VAR, mas não compreendem seus critérios. Precisamos aprimorar a comunicação sobre quando o árbitro de vídeo deve intervir – explicou.
– Acredito que a introdução da tecnologia do impedimento semiautomático, quando implementada no Brasil, dará mais credibilidade ao nosso futebol. Contudo, a aplicação do VAR é necessária, em parte, devido à ineficácia de alguns árbitros de campo. Quando as arbitragens são competentes, o VAR não se torna o foco da discussão. Dessa forma, precisamos elevar a qualidade dos árbitros para que se fale menos sobre o VAR.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Seneme também defende a profissionalização dos árbitros como uma solução para reduzir a pressão e as críticas que eles enfrentam.
– Um árbitro na Conmebol recebe cerca de US$ 3.300 por jogo (aproximadamente R$ 17,4 mil). Já Raphael Claus, um dos melhores árbitros do mundo, recebe cerca de R$ 8 mil. Esse valor é relativamente alto, mas se considerarmos o número limitado de árbitros de alto nível, essa comparação é falha. Não estamos tratando de uma profissão comum – refletiu.
– Os árbitros são seres humanos, fazem aniversários, podem se machucar e, dependendo da gravidade da lesão, podem não ter condições de se pronunciar. Eles sentem medo, levam seus filhos à escola e têm fragilidades. Não são sobre-humanos.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Em uma entrevista de aproximadamente 1h30 na sede da EPTV, afiliada da Globo em São Carlos, Seneme delineou o perfil ideal para um árbitro de excelência, opinou sobre quem considera o melhor brasileiro atualmente e comentou a falta de profissionalização na arbitragem, entre outros temas discutidos.
Ficha técnica:
- Nome: Wilson Luiz Seneme.
- Idade: 55 anos (28/08/1970).
- Profissão: ex-árbitro de futebol.
- Carreira: Árbitro na Federação Paulista de Futebol (1999-2014); Árbitro Fifa (2006-2014); Presidente da Comissão de Arbitragem da Conmebol (2016-2024); Presidente da Comissão de Arbitragem da CBF (2024-2025); Membro do Comitê de Arbitragem da Fifa.
ge.globo: Antes de ser árbitro, você chegou a ser jogador de futebol profissional?
Wilson Seneme: – Sim, joguei por cinco anos. Iniciei nas categorias de base, depois joguei no Guarani por quatro anos e me lembro de ter sido convocado para a seleção sub-17 após um bom desempenho nos treinos. Após isso, joguei pelo Guarani e conquistei o Paulista sub-17, fazendo meu sonho se concretizar. No entanto, a carreira não se desenvolveu como eu esperava, joguei em campeonatos menores até decidir parar aos 24 anos e me formar em Educação Física.
Quando você começou na arbitragem?
– A entrada na arbitragem foi motivada pela necessidade financeira, pois como educador físico não tinha uma remuneração justa. Fui convidado para apitar e improvisei com cartões de papel e um apito que já usava. Realmente não conseguia explicar, mas era como se tivesse encontrado minha verdadeira vocação.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Como era seu comportamento como jogador em relação aos árbitros?
– Sempre tive uma personalidade forte, era zagueiro e várias vezes fui capitão. Naquela época, era inconcebível um zagueiro permitir que um atacante o agredisse. Era um jogador que pressionava os árbitros e isso se refletiu positivamente na minha carreira.
– O jogador vai se comportar como o árbitro permitir. Se o árbitro conseguir conquistar o respeito e a atenção do jogador, a partida fluirá melhor. Mas, se o árbitro demonstrar fragilidade, os jogadores perceberão e pressionarão.
A arbitragem te trouxe mais satisfação do que uma carreira longa como jogador?
– Muitos amigos queriam ser jogadores, mas não conseguiram e vivem presos a um passado. A arbitragem me completou. Fiz conquistas e me identifiquei como árbitro, o que gerou um profundo orgulho em mim. É uma sensação de privilégio.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Como você avaliaria sua carreira como árbitro?
– Minha abordagem enquanto árbitro foi discreta. Em jogos decisivos, estava consciente da pressão e sabia que não podia errar. Para mim, não ser notado como árbitro foi uma conquista.
O objetivo é que a vitória após a partida seja a certeza de que tudo se desenrolou conforme o planejado, sem a necessidade de destaque. Isso é como um professor que se sente realizado quando seus alunos têm um bom desempenho.
Você também tinha um comportamento discreto com os jogadores?
– A arbitragem da minha época era mais reservada em comparação aos tempos atuais. Durante minha carreira, nunca recebi ligações pedindo favores. Acredito que é fundamental que os árbitros sejam vistos como seres humanos, mas é essencial manter uma certa distância em relação a jogadores e dirigentes para garantir a ética.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
O Brasil está formando melhores árbitros ou há uma carência de talentos?
– Como gestor, percebo que o número de jogos aumentou significativamente, assim como as oportunidades. Acredito que os árbitros de hoje estão melhores preparados do que os do passado. Durante minha época, havia muito menos cursos e treinamentos. Hoje, é comum ver árbitros em melhor condição física e técnica.
– A demanda pelo árbitro atual aumentou com a introdução do VAR. No passado, um erro por parte do árbitro assistente era desculpável, mas atualmente, a precisão absoluta é esperada.
Quem seria o melhor árbitro brasileiro hoje?
– Dependeria do momento, mas atualmente vejo o Ramon Abatti Abel como o árbitro que mais se destaca. Ele possui características físicas, técnicas e disciplinares alinhadas ao que buscamos.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
A classe de árbitros está unida?
– Há uma união espiritual, mas como os árbitros vivem em diferentes cidades, a conexão é principalmente virtual. É preciso que os interesses individuais não se sobreponham aos coletivos. A profissionalização é uma solução que pode trazer benefícios, mas deve ser focada na melhoria do futebol como um todo, não apenas nos árbitros.
Além disso, é necessário criar centros de desenvolvimento para a arbitragem, assim como já existem para os jogadores. A implementação de um sistema de árbitros profissionais semelhantes ao modelo da Premier League seria um avanço significativo.
Qual é sua proposta para a profissão?
– Baseei minha proposta nas iniciativas da Conmebol. Quando cheguei lá, havia poucas estruturas estabelecidas. Implementamos o VAR e a capacitação dos árbitros. Com ações de pré-temporada e cursos regulares, focamos em um treinamento contínuo e na criação de um centro de excelência para árbitros, semelhante ao que existe na AFA.
O plano a longo prazo inclui a formalização da profissão, pois apenas assim poderemos garantir os direitos e a proteção que os árbitros merecem. Caso contrário, estaremos apenas “jogando a sujeira para debaixo do tapete”.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Por que suas propostas não foram implementadas?
– A estrutura da Conmebol protege a arbitragem. Contudo, no Brasil, a política do futebol interfere de maneira negativa. A pressão pode enfraquecer o árbitro, tanto na forma como lidamos com erros quanto nas expectativas que temos. Meu maior desapontamento na CBF foi perceber que, quando deveria haver investimentos e suporte, o contrário ocorreu.
– As mudanças que acontecerem na nova gestão são um bom sinal, mas precisamos avaliar se elas estão ocorrendo por razões corretas ou apenas para apaziguar a opinião pública. Acredito que a arbitragem deve permanecer autônoma e segura durante as competições.
A política precisa ter mais influência que a técnica para que um gestor esteja no comando da arbitragem?
– A influência política não deve sobressair à técnica, pois isso apenas enfraquece a arbitragem. Os gestores precisam entender que a arbitragem é uma área técnica que requer autonomia, e que os erros irão ocorrer, assim como os acertos.
Se a arbitragem continuar a ser usada politicamente, a qualidade do esporte será comprometida. Um árbitro que não tem a confiança do corpo diretivo enfrentará dificuldades.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Os árbitros são bem remunerados ou recebem pouco?
– Na Conmebol, os árbitros recebem cerca de US$ 3.300 por partida, um valor que pode ser considerado justo nesse contexto. Em contrapartida, o valor recebido por um árbitro no Brasil, como o Raphael Claus, que apita uma final, é apenas R$ 8 mil. Essa remuneração não condiz com a importância do papel do árbitro no resultado de um jogo, considerando o que um clube pode ganhar ou perder.
A boa remuneração é um fator crucial para reduzir a pressão sobre os árbitros. Quando um árbitro entra em campo preocupado com questões financeiras, isso representa uma desvantagem já que o profissional enfrenta muitas pressões.
A CBF, por exemplo, conseguiu aumentar a remuneração do árbitro que apita a final da Copa do Brasil de R$ 8 mil para R$ 20 mil. Mas ainda é um valor ínfimo quando comparado ao faturamento de um clube depois de uma vitória.
Acredito que o futuro da arbitragem não está nas mãos das entidades que a gerenciam, mas em empresas privadas.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Você apoia a ideia de árbitros darem entrevistas pós-jogo?
– Absolutamente. É fundamental humanizar o árbitro e permitir que ele explique suas decisões, assim como é feito com técnicos que se sentam sob pressão para justificar seus atos. Por que um árbitro não poderia ser tratado da mesma forma?
Por que isso ainda não acontece?
– O sistema está falido. A forma como a arbitragem é organizada não funciona. Precisamos de empresas especializadas na gestão da arbitragem. Atualmente, há uma aversão à estrutura que não sabemos lidar adequadamente.
Foi essa a razão pela qual você começou a criar vídeos na CBF analisando erros e explicando decisões dos árbitros após cada rodada?
– Trabalhei com a comunicação da CBF e decidimos abrir um diálogo, explicando as decisões e instantes controversos. Mesmo ciente dos riscos de desgastar minha imagem pública, essa tentativa era para ajudar a esclarecer e promover compreensão.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Por que os árbitros são frequentemente vistos como inimigos do futebol?
– O que se pensa da arbitragem aqui é semelhante ao que se pensa em outros países, como Argentina ou Europa. Existe uma tendência a comparar a arbitragem brasileira com a europeia, desconsiderando que já temos árbitros em competições de elite como a última Copa América e a Copa do Mundo.
– Os erros que ocorrem em nosso país são comuns em outras partes do mundo. A equipe da CBF trabalhou arduamente e, até mesmo sob pressão, sempre busquei conduzir a arbitragem com integridade.
Falta um olhar mais humano sobre os árbitros?
– O árbitro, como qualquer pessoa, enfrenta desafios em seu dia a dia. Ele é um ser humano que deve lidar com suas emoções e pressões. Os torcedores precisam entender que, assim como um atleta, um árbitro pode errar.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
A tecnologia pode estar sendo mal utilizada por árbitros?
– O VAR foi uma mudança difícil para muitos árbitros que não estavam preparados para essa adaptação. O impacto na autoestima de um árbitro é significativo. No entanto, a nova geração se integra melhor ao uso dessa ferramenta. A Fifa está buscando capacitar os árbitros para que não dependam exclusivamente do VAR e mantenham a confiança em suas decisões.
Qual é o principal problema do VAR atualmente?
– O treinamento ainda é a questão central. Para que a equipe VAR e os árbitros atuem de maneira sinérgica, eles precisam treinar juntos. O treinamento consistente vai aprimorar a qualidade das decisões tomadas em campo.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
O comportamento dos jogadores no Brasil afeta a arbitragem?
– Sim, existem várias razões para isso, incluindo fatores culturais e educacionais que ultrapassam o futebol. A postura dos jogadores brasileiros, em comparação com os europeus, é diferente. O jogador brasileiro tende a reclamar mesmo quando sabe que o árbitro está certo, o que é um problema.
Por que existe tanta variação nos critérios de um árbitro para outro que, por vezes, contrasta com as regras?
– A consciência das regras de futebol entre a população é limitada. Isso resulta em críticas e comparações que muitas vezes são infundadas. É necessário democratizar a interpretação das regras para que todos, não apenas os árbitros, possam entender.
A comunicação sobre critérios deve ser expandida, e uma maior familiaridade com as regras ajudaria tanto árbitros quanto jogadores a se comunicarem melhor em campo.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Como está a escala de arbitragem atualmente?
– O sistema de sorteio não é mais utilizado; agora os árbitros são escalados com base em critérios que relacionam a importância do jogo e os perfis dos árbitros. É uma conjunção de muitos fatores para garantir que o árbitro certo esteja no lugar certo.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Há pressão e interferência externa na arbitragem?
– Não experimentei pressão em minha carreira, tanto em campo quanto fora dele. Nunca recebi contato para favorecer alguém ou algo do tipo.
Você se sente decepcionado com a sua demissão na CBF?
– Sim, a interrupção no meu projeto foi frustrante. Tinha um compromisso com a CBF e apresentei um plano robusto, mas fui surpreendido com a demissão. Estou buscando entender essa situação. A arbitragem requer melhorias e democratização, e as instituições precisam trabalhar para ajudar a esclarecer as regras para o público.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Essa frustração é maior que a de não ter apitado uma Copa do Mundo?
– A Copa do Mundo foi uma conquista pessoal, passei por desafios físicos e cheguei à Fifa. Ter sido parte da comissão de arbitragem em duas Copas do Mundo foi uma grande honra, superando qualquer desapontamento que eu possa ter enfrentado.
Você consegue se desconectar da figura de árbitro e ser apenas um fã do futebol?
– É impossível. Joguei contra atletas que agora estão em destaque. Por exemplo, quando apitei um jogo que envolvia Roberto Carlos, não deixei o ídolo influenciar minha decisão; minha função era ser imparcial, independentemente de quem estivesse em campo. Aprendi a proteger os craques, garantindo que eles fossem respeitados, sem favorecer nenhum lado.
Wilson Seneme em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Marcos Ribolli
Existem perguntas que você gostaria que fossem feitas?
– Nunca havia participado de uma entrevista tão abrangente como esta em 40 anos de relacionamento com o futebol. Este espaço foi essencial para eu compartilhar minhas vivências e pensamentos.
Pela primeira vez, o árbitro não se sentiu carente?
– Realmente foi uma experiência nova. Senti que pude expressar e compartilhar, e agradeço pela oportunidade.
Fonte: ge