Era tarde da noite do dia 8 de abril de 2025. Com São Januário repleto de torcedores do Vasco, o setor destinado à torcida visitante da Academia Puerto Cabello tinha poucos ocupantes. Entre alguns vascaínos disfarçados, destacava-se um homem que, embora torcesse para a equipe adversária, também tinha um carinho especial pelo Vasco.
O relato trazido pelo ge conta a trajetória de um torcedor venezuelano que deixou sua terra para viver no Rio de Janeiro, especificamente em um local muito querido pelos vascaínos: a Barreira do Vasco. Ele menciona como essa comunidade “salvou sua vida” no novo país e como se tornou um torcedor apaixonado do Vasco, antes do jogo marcado para esta quinta-feira, às 19h, entre Puerto Cabello e Vasco, na Venezuela.
— Muito prazer! Meu nome é Carlos Casares, sou venezuelano e moro no Rio desde 2018. Eu deixei meu país fugindo de uma situação complicada. O Brasil me acolheu tão bem que agora eu chamo de “meu lar”. Meu primeiro ano aqui foi na Barreira do Vasco.
Carlos, torcedor do Puerto Cabello e do Vasco, em São Januário — Foto: Reprodução
A vinda ao Brasil
Após passar por um período difícil em sua terra, incluindo o fim do casamento e o fechamento da sua empresa, Carlos partiu em direção à Argentina. No caminho, foi assaltado na fronteira com o Brasil e ficou apenas com as passagens para Manaus e para o Rio de Janeiro. Ao chegar na cidade, com pouco dinheiro, decidiu buscar ajuda.
— Fui até um sacerdote peruano que é reitor de um seminário na Tijuca. Conversei com ele, que não pôde me abrigar, mas me indicou uma pessoa que poderia ajudar. O endereço ficava na Rua Argentina, ao lado da entrada de visitantes de São Januário. Quando cheguei lá, conversei com o homem, que me ofereceu moradia.
— Inicialmente, eu planejava ficar por duas semanas, mas acabei permanecendo por quatro meses. Depois, como fazia parte da comunidade da Igreja, precisaria morar sozinho. Saindo daquela casa, fui buscar meu lugar na Barreira. A experiência foi bastante positiva, enfrentando as dificuldades típicas mas dentro de um ambiente familiar e festivo, que é a Barreira do Vasco.
A partir desse momento, a vida de Carlos no Rio de Janeiro se transformou. Ele, que hoje é residente legal e trabalha em uma empresa de tecnologia, notou que o Vasco vai além de um simples clube de futebol para a comunidade ao redor de São Januário.
— Isso modificou muito minha percepção da cidade e do que significa ser carioca. Essa mudança ocorreu por meio da visão de ser vascaíno e morador da Barreira. Tenho um grande orgulho disso. O Vasco representa muito mais que vitórias, que atualmente não têm sido frequentes; é uma questão cultural, uma conexão com o bairro e as pessoas que ali vivem.
Embora morasse na Barreira, Carlos ainda não tinha incorporado o Vasco em sua vida. Em uma conversa com o sacerdote que o acolheu, que era palmeirense, ele foi instruído a escolher um time para torcer no Brasil.
— O conselho dele foi claro: “Você pode torcer para qualquer time, menos o Flamengo” — disse Carlos, rindo.
Certa vez, ao caminhar próximo a São Januário, ele entrou no Parque Aquático para verificar a possibilidade de nadar, um esporte que praticava em seu país.
— Expliquei que estava sem dinheiro e quis fazer um teste de natação. Marcaram para um sábado às 7h da manhã. Nadei, eles avaliaram meu desempenho e aceitei. Me informaram que não precisaria pagar nada; apenas seguiria as regras do clube.
— Passei oito meses nadando na equipe masters do Vasco. Foi durante a natação que me tornei vascaíno — revelou.
Carlos, torcedor do Puerto Cabello e do Vasco, nadando em São Januário — Foto: Reprodução
Vasco x Puerto Cabello em São Januário
Como vascaíno, Carlos acompanhou diversos jogos tanto em São Januário quanto no Maracanã. Ele se considera um talismã para o time, pois sempre que está presente, o Vasco consegue vencer. Foi assim nas partidas contra o Bahia, no Campeonato Brasileiro do ano passado, contra o Fortaleza na Copa do Brasil e… contra o Puerto Cabello, seu clube do coração na Venezuela.
— Eu costumava torcer pelo Carabobo, um time da capital. Após a criação do Puerto Cabello, que ascendeu à primeira divisão em 2013, passei a me envolver com eles. Admito que não era um torcedor fervoroso, mas, ao emigrar, tudo que deixei na minha terra permanece em meu coração. Agora, que estou longe, sou um torcedor apaixonado do Puerto Cabello.
Quando soube que Vasco e Puerto Cabello se enfrentariam no Rio de Janeiro, Carlos fez o possível para conseguir um ingresso. Com a ajuda de um amigo de infância, recebeu uma camisa do clube como presente.
— O Puerto Cabello já tinha jogado no Brasil em competições internacionais antes, incluindo uma partida da Libertadores dois anos atrás contra o São Paulo. Eu queria muito ter ido, mas na época não tinha dinheiro. Porém, quando saiu o sorteio, em constatei que precisava ir ao jogo; seria uma honra ir com a camisa do Vasco e torcer em silêncio pelo Puerto Cabello.
— Um médico do clube, que estudou comigo há muitos anos, perguntou por mim, e eu consegui conversar com ele. Ele me presenteou a camisa do Puerto Cabello um dia antes do jogo do Vasco.
Fisioterapeuta e médico do Puerto Cabello, ao lado de Carlos — Foto: Reprodução
— Tive meu coração dividido. Confesso que fiquei um pouco desapontado pelo gol do Vegetti, mas entendo que o Puerto Cabello está em um nível inferior ao do Vasco. O simples fato de eles estarem jogando em São Januário foi uma grande alegria para mim.
A relação com a Barreira do Vasco
Carlos acredita que sua adaptação à Barreira do Vasco e à vida comunitária se baseou em três pilares. Primeiro, a ligação com a Igreja; segundo, a entrada no time de natação do Vasco e, por último, o amor pelo clube carioca. Ele ressaltou que esse lugar lhe proporcionou um sentimento de família e segurança que ainda não havia encontrado no Brasil.
— Meu primeiro contato com a Barreira foi a Igreja, a Paróquia Santo André. A interação com as pessoas da Igreja foi maravilhosa. Foi a primeira vez que me senti parte de uma família no Brasil. O Rio de Janeiro pode ser caloroso em algumas áreas, mas também é hostil e agressivo. Você deve estar sempre alerta, pois qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento.
— Dentro da Barreira do Vasco, uma comunidade marcada por drogas e violência, não senti essa necessidade de me proteger. Tive uma sensação de segurança incrível. Apesar dos perigos que a cidade apresenta, eu me sentia calmo ali — explicou Carlos.
Com a experiência na natação e nos jogos do Vasco, Carlos se enamorou pelo clube e pela área em torno de São Januário.
— No time master de natação do Vasco, minha visão evoluiu, compreendendo que o Club de Regatas Vasco da Gama é muito mais do que só futebol. A estrutura do clube abrange basquete, natação e várias outras modalidades que funcionam dentro de São Januário. Em relação ao time de futebol, a energia da torcida é indescritível. Estar na arquibancada, cercado de pessoas gritando, é maravilhoso. Não tem como não se apaixonar.
Carlos, torcedor do Puerto Cabello e do Vasco, em São Januário — Foto: Reprodução
Ao refletir sobre sua jornada, Carlos se emociona ao recordar as dificuldades enfrentadas nos primeiros dias no Brasil, desde o assalto na fronteira até a chegada ao Rio. Ele expressa sua eterna gratidão às pessoas da Paróquia de Santo André, que fica na Barreira do Vasco.
— Aqueles primeiros dias foram extremamente desafiadores. Embora tenha enfrentado dificuldades com o idioma e tenha trabalhado em diversas funções, sempre contei com a proteção do grupo da Igreja. Sou eternamente grato a eles. Eles salvaram minha vida. Estou vivo hoje graças a essa comunidade.
Atualmente, Carlos trabalha em uma empresa de tecnologia e se mudou da Barreira do Vasco para Vargem Pequena, mas mantém viva sua paixão pelo local que o acolheu e ajudou na adaptação ao Rio. Ele acredita que todo carioca tem um time e uma escola de samba. Ele se identifica como vascaíno e mangueirense, embora também faça menção à Paraíso do Tuiuti, uma escola de samba da região de São Cristóvão.
Com um coração dividido entre Vasco e Puerto Cabello, Carlos, que é pai de um menino brasileiro, planeja se naturalizar em 2025. O filho, que tem quatro anos, deverá herdar a paixão pelo Vasco — e ele confessa que tentará transmitir o amor pelo Puerto Cabello também.
— Meu filho se chama Luiz Rodrigo, e um amigo comentou que ele tem nome de craque brasileiro. Não sei se conseguirei transmitir a paixão pelo Puerto Cabello, mas certamente farei questão de que ele seja vascaíno.
O Vasco visitará o Puerto Cabello nesta quinta-feira, às 19h (horário de Brasília), na Venezuela, pela quarta rodada da Copa Sul-Americana. Carlos, do Rio de Janeiro, acompanhará o jogo com o coração dividido, mas feliz pela chance de unir suas duas paixões.
Fonte: ge