Imagine a seguinte cena: Jorginho rouba a bola no meio de campo e toca para Philippe Coutinho. O meia faz uma jogada pelo centro e oferece um belo passe para Samuel Lino, que cruza para Vegetti marcar o gol da equipe Vasco-Flamengo, enchendo o Maracanã de alegria. Embora pareça uma fantasia diante da intensa rivalidade do Clássico dos Milhões, que ocorre neste domingo, às 17h30, pelo Brasileirão, um evento semelhante aconteceu há 70 anos. Vamos esclarecer essa história.
Em dezembro de 1955, Vasco e Flamengo participaram de um Torneio Quadrangular Internacional no Rio de Janeiro, com a presença dos argentinos Independiente e Racing. O jogo que deu início à competição foi, sem dúvida, inusitado. As direções dos clubes organizaram um embate entre um time formado por jogadores cariocas e um outro com atletas dos clubes argentinos.
A partida atraiu a atenção do futebol carioca e da mídia esportiva local. O jornal “O Globo” fez uma cobertura meticulosa de todo o evento, desde a chegada dos argentinos ao Aeroporto Santos Dumont até a realização do torneio.
Os treinadores de Racing e Independiente tomaram uma decisão prática para definir a escalação do combinado: no primeiro tempo, a defesa do Racing e o ataque do Independiente jogariam juntos, e, no segundo tempo, as equipes seriam invertidas. A escolha dos uniformes também foi simples: no primeiro tempo, o vermelho do Independiente e, no segundo, o azul e branco do Racing.
Por outro lado, as escolhas do lado carioca foram mais controversas. Houve grande debate entre os dirigentes do Flamengo sobre qual uniforme usar. O presidente rubro-negro, Gilberto Cardoso, havia falecido no mês anterior, durante um jogo de basquete, e era considerado o idealizador do combinado.
Após algumas declarações contrárias ao uso da camisa do Vasco pelos jogadores do Flamengo, o vice-presidente Fadel Fadel se manifestou firmemente, afirmando que os atletas do Flamengo poderiam, sim, usar a camisa vascaína.
— Ninguém admira mais o Ari do que eu. Acostumei-me a apreciar as suas grandes qualidades de desportista e defensor das nossas cores. Por isso mesmo, sinto-me à vontade para discordar dele. A formação de um combinado Vasco-Flamengo já é uma tradição. Em 1939, estivemos juntos em Buenos Aires, enfrentando o Independiente e o River. E, em 1952, tivemos encontros com o Boca e o Racing. A união dos dois grandes clubes ao longo do tempo merece respeito — afirmou o vice-presidente do Flamengo ao jornal “O Globo”.
Fadel Fadel ainda acrescentou:
— O Ari não é mais Flamengo do que qualquer um de nós. A ideia do torneio e da formação do combinado partiu do nosso saudoso presidente Gilberto Cardoso, reconhecido por todos como exemplo de amor e dedicação ao clube. Jamais passou pela cabeça do Gilberto fazer restrições ao uso da gloriosa camisa vascaína. Certamente, os jogadores do Flamengo têm a honra de vestir a camisa do Vasco, assim como os vascaínos também se sentirão honrados ao usar as nossas cores.
A solução final para a questão dos uniformes foi, em homenagem a Gilberto Cardoso, o uso da camisa do Flamengo em ambas as etapas do jogo. Antes da partida contra os argentinos, os jogadores do Flamengo treinaram com a camisa do Vasco ao enfrentarem a equipe de aspirantes do clube.
A escalação foi decidida durante esse último treino, com dois grandes técnicos da história do futebol carioca: Fleitas Solich, tricampeão estadual pelo Flamengo, e Flávio Costa, ícone do Vasco, que treinou o Expresso da Vitória no final dos anos 40.
- Combinado argentino: Domingues (Racing), Anido (Racing), Garcia Perez (Racing), Sivo (Racing), De Vicenti (Racing) e Cap (Racing); Micheli (Independiente), Ruarez (Independiente), Bonelli (Independiente), Grillo (Independiente) e Cruz (Independiente).
- Combinado brasileiro: Hélio (Vasco), Paulinho (Vasco), Pavão (Flamengo), Jordan (Flamengo), Jadir (Flamengo), Dequinha (Flamengo), Joel (Flamengo), Paulinho (Flamengo), Dida (Flamengo), Pinga (Vasco) e Parodi (Vasco).
No segundo tempo, entraram em campo os ídolos Vavá e Ademir, ambos do Vasco, pelo combinado carioca.
Vitória brasileira e “cenas lamentáveis”
O combinado Flamengo-Vasco não deu chances ao time Independiente-Racing, vencendo a partida com um expressivo 3 a 1, o que foi amplamente noticiado como uma vitória “categórica”.
Paulinho, do Flamengo, abriu o placar logo aos nove minutos com um chute de longa distância. Micheli, do Independiente, empatou aos 20 minutos, mas Dida, do Flamengo, voltou a colocar os brasileiros à frente aos 26. No segundo tempo, Parodi, do Vasco, fechou a conta ao marcar o terceiro gol.
— Fiquei satisfeito com a partida, especialmente com o resultado. Foi uma verdadeira demonstração do nosso futebol, bem representado pelo combinado que formamos e que não deixou a desejar em comparação às seleções nacionais que nos representaram em competições internacionais — afirmou Flávio Costa após o jogo.
Apesar da rivalidade histórica entre Vasco e Flamengo, que já ocasionou diversas confusões, assim como as disputas entre Racing e Independiente, o espírito de competição Brasil contra Argentina esteve presente em todos os jogadores em campo. Os rivais se uniram para um duelo digno de um clássico sul-americano, repleto de disputas intensas e entradas duras.
— Embora os argentinos possam parecer inferiores em técnica, eles não ficam atrás em indisciplina. A expulsão de Parodi foi apenas a desculpa para os incidentes, mas vale lembrar que Grillo e Garcia Perez iniciaram as confusões. Suas reclamações constantes e entradas desleais criaram um clima de violência — reportou o jornal “O Globo” no dia seguinte à vitória brasileira.
Os jogadores do time brasileiro alegaram que Varacka, cuja entrada resultou na expulsão de Parodi, estava jogando de forma imprudente. O atleta argentino entrou na vaga de De Vicenti, um dos destaques da equipe, e cometeu várias faltas. Parodi revidou e acabou expulso após uma jogada polêmica.
— Eu jogava limpo e com fair play, assim como o médio De Vicenti. Contudo, a entrada de Varacka mudou a dinâmica do jogo. Infelizmente, fui surpreendido com minha expulsão — lamentou Parodi.
— Estou acostumado a competições com os argentinos e não me surpreendi com o desenrolar dos acontecimentos — acrescentou Ademir, defendendo Parodi.
Fim do quadrangular e título para o Flamengo
Não houve outro jogo entre as equipes nacionais no Torneio Quadrangular. As vitórias foram somadas para Vasco e Flamengo. O clube de São Januário perdeu para o Independiente por 4 a 1 e venceu o Racing por 3 a 2. Já o time da Gávea venceu o Racing por 2 a 1 e sagrou-se campeão ao derrotar o Independiente por 3 a 0.
O embate entre Vasco-Flamengo e Independiente-Racing ocorreu no dia 23 de dezembro de 1955. Quase 70 anos depois, Vasco e Flamengo estarão novamente no Maracanã, mas desta vez defendendo suas próprias cores. O confronto será às 17h30, pela 24ª rodada do Brasileirão.
Fonte: ge