A Ordem do Corvo
Álvaro do Nascimento
Crônica publicada na Manchete Esportiva no. 8, de 14 de janeiro de 1956, pp. 28-29. Ilustração de Otelo Caçador.
Numa tarde de 1947, o desenhista Otelo Caçador apresentava-nos, na
redação do “Jornal dos Sports”, o seu primeiro desenho. Lorenzo Molas,
autor das figuras simbólicas dos nossos clubes desportivos, havia
regressado a Buenos Aires e o “Jornal dos Sports” necessitava um
desenhista. Achamos interessante o desenho de Otelo Caçador. Tratava-se
de uma caravela em cujo comando se encontrava o tradicional almirante
vascaíno dando ordens a seus marujos que se empenhavam em lutar com o
Popeye, Cartola, Pato Donald, o Diabo Rubro e outros adversários. Num
dos mastros da caravela, um corvo assistia à luta. Otelo Caçador não
soube explicar-nos a origem ou a razão daquele corvo. Disse-nos apenas:
— O corvo, em Portugal, é uma ave que traz boa sorte…
Conhecíamos a história daquele corvo do Califa Omar, quando se fundou
a cidade do Cairo, o famoso poema de Edgar Allan Poe e os corvos de São
Vicente trazidos para a sé de Lisboa. Conhecíamos até, da História
Sagrada, o corvo da Arca de Noé, que saiu do abrigo e não voltou mais
por ter encontrado terra firme.
Mário Filho, diretor do “Jornal dos Sports”, era, àquela época, chefe
da seção desportiva do vespertino “O Globo”. Telefonamos para Mário
Filho. A resposta do diretor foi radical:
— Esses meninos fazem um desenho de seis em seis meses e nós precisamos
de um homem que faça desenhos diários.
O CORVO SIMBÓLICO REVOLUCIONA A CIDADE
Logo à publicação do primeiro desenho de Otelo Caçador todos queriam
saber a origem, os motivos daquele corvo na vida do Almirante. O
esquadrão vascaíno, com o corvo, ganhava sempre. E o corvo foi
condecorado e teve um trono. Passou a chamar-se Sua Majestade D. Corvo
I e Único, usava condecorações e, através da Ordem do Corvo, concedeu
títulos honoríficos de comendador, barão, visconde e duque aos mais
destacados vascaínos.
Um dia, porém, na sala presidencial do Vasco da Gama, Ciro Aranha, José
do Amaral Osório, Artur da Fonseca Soares, João de Luca e outros
vascaínos acharam que S.M.D. Corvo I e Único não se podia limitar a uma
figura simbólica. O Vasco precisava um corvo de verdade. Fomos incumbidos
de conseguir um corvo a qualquer preço. Acontece que no Brasil não há
corvos e Portugal proibe a sua saída do país.
Foi o jornalista Silva do Mar quem nos apresentou o Antônio Pedro, da
Livros Portugal, como o homem capaz de conseguir um corvo em Lisboa e a
respectiva autorização para sair do país. E Antônio Pedro, com o seu
prestígio, conseguiu por intermédio do presidente de uma empresa
armadora da capital portuguesa, a vinda de um corvo vicentino, corvo da
mesma raça daqueles que acompanharam São Vicente até a sé de Lisboa e
hoje fazem parte das armas da bela capital lusitana.
Esse corvo ainda vive, está aos nossos cuidados e não o vendemos por
todo dinheiro desse mundo. Ele representa, para nós, uma fase áurea do
Vasco da Gama. Foi durante o seu reinado que o grêmio da Cruz de Malta
conseguiu ser campeão invicto de terra e mar, que se construiu a sede
náutica da lagoa Rodrigo de Freitas, o estádio aquático de São Januário
e o ginásio.
UM CORVO QUE NÃO ERA CORVO!…
Durante quase dois meses esperamos a chegada do corvo de Lisboa. As
vésperas do encontro Vasco-Olaria, no campo da rua Bariri, recebemos
[um telegrama] anunciando sua chegada. Anunciamos, então, que o corvo
compareceria ao campo do Olaria. O corvo não chegou!… Milhares de
pessoas aguardavam a chegada de Sua Majestade ao campo “bariri”.
Silva do Mar e Cardoso Gramofone tiveram uma ideia genial. Conseguiram
um pombo preto, envernizaram-lhe os pés e o bico e lá fomos para o
campo do Olaria. Findo o jogo, o pombo, dentro da gaiola, foi colocado
sobre a capota do automóvel. Milhares de vascaínos com bandeiras e
flâmulas aclamaram o falso rei.
FINALMENTE CHEGOU SUA MAJESTADE
A chegada de D. Corvo I e Único ao Rio de Janeiro foi um acontecimento.
Formou-se um cortejo com clarins e Sua Majestade dirigiu-se a Rádio
Mayrink Veiga, onde foi recebido por todos os artistas daquela emissora.
Dali seguiu para a Rádio Clube do Brasil, onde se realizava um programa
em sua homenagem. As festas de recepção terminaram na redação do
“Jornal dos Sports”.
No palácio de Sua Majestade, à Avenida Mem de Sá, 144, D. Corvo I e
Único recebeu as pessoas mais categorizadas do Vasco da Gama e do esporte
nacional.
GRANDE TRIUNFO NO CAMPEONATO DE REMO
Em 1947, havia dúvidas quanto à conquista do Campeonato de Remo. Rafael
Verri aconselhou-nos a levar D. Corvo I e Único. O Vasco da Gama ganhou
o campeonato por grande margem de pontos.
Silvano de Brito e Ari Barroso, na tribuna de honra da lagoa Rodrigo de
Freitas, receberam e ofereceram uma taça de champanhe a Sua Majestade.
O PRESIDENTE TENTA DESTITUIR O CORVO
O presidente do Vasco da Gama, sr. Antônio Rodrigues Tavares, ante o
prestígio de Sua Majestade D. Corvo I e Único, resolveu distribuir uma
nota oficial à imprensa na qual declarava que as vitórias do grêmio da
Cruz de Malta se deviam ao quadro de atletas e ao técnico Flavio Costa
e não a S.M.D. Corvo I e Único. Sua Majestade achou graça à nota
oficial. No último jogo do campeonato, no campo do Madureira, Sua
Majestade deu a resposta ao presidente Antônio Rodrigues Tavares. Desceu
de Madureira com um cortejo composto de doze carros alegóricos e um
acompanhamento de cerca de mil automóveis. Nenhum homem público, até
então, havia recebido maior manifestação nesta leal e nobre cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro.
Para perpetuar o reinado de Sua Majestade D. Corvo I e Único, o
presidente Ciro Aranha tem na sua residência um corvo de porcelana,
oferecido pela Viúva Vinelfi, em cujo pedestal estão inscritos os
campeonatos obtidos durante o reinado do famoso corvo vicentino que
hoje vive isolado, mas com o carinho dos seus tratadores vascaínos.