Hora H
Mário Filho
Extraído de crônica publicada na Manchete Esportiva no. 56, de
15 de dezembro de 1956
(…)
O momento do pênalte é favorável para uma guerrinha de nervos. Noutros
tempos a gente via Oscarino fazendo sinais sobre a bola. Era como se a
benzesse ao contrário, pois se dizia que ele era Pai de Santo ou coisa
parecida. Tinha quíper que ficava logo perturbado, embora bastasse a
bola a onze passos, ele no meio do gol, pequenino, para perturbá-lo. Já
Fausto dos Santos, a Maravilha Negra, e Tinoco, um que parecia que estava
rindo sempre, e não estava, era um tique que ele tinha, cuspiam na bola,
besuntavam-na de cuspo. Chegavam a puxar o cuspo mais grosso, do fundo
do peito. Se o quíper era o Joel de Oliveira Monteiro a bola podia ir
para cima dele, devagar, que ele não seguraria de jeito algum. Antes,
porém, Joel de Oliveira Monteiro saía do gol para reclamar ao juiz.
Fausto e Tinoco, então, chamavam mais jogadores do Vasco para cuspir na
bola.
(…)
Às vezes, porém, o quíper é quem descontrola o atacante. Joel se
arrepiava todo, de nojo, quando cuspiam na bola. Jaguaré Bezerra de
Vasconcelos, pelo contrário, era o primeiro a cuspir na bola. E dizia
para quem ia bater o pênalte: Pode bater que eu vou rodar a bichinha na
ponta do dedo. E rodou-a algumas vezes. Até mesmo num pênalte batido
por Grané. Para se ter uma ideia do chute de Grané: ele ia bater um
off-side dentro da pequena área e os companheiros pediam-lhe que
chutasse devagar. Porque se ele chutasse com força a bola atravessava
o campo, ia perder-se atrás do outro gol. Pois Jaguaré, depois de
cuspir na bola, avisou a Grané que ia rodá-la na ponta do dedo. O
chute de Grané partiu para cima de Jaguaré. Jaguaré agarrou a bola,
caiu sentado, com toda a força, os olhos revirando. Não estava
totalmente desacordado, porém. Lembrou-se a tempo e, insolentemente,
sorrindo um sorriso de anjo tocando ou ouvindo harpa, rodou a bichinha
no dedo.
A melhor, porém, foi de Chiquinho, um quíper que jogou pelo Vasco lá
por volta de 41. Esse Chiquinho, que não era essas coisas, foi um
gênio na hora de um pênalte. Disputava-se na Gávea um Flamengo e
Vasco, o juiz se chamava Pereira Gomes, que não sei onde se meteu.
Pois Pereira Gomes marca um pênalte contra o Vasco. Chiquinho, o quíper,
não tem dúvida: desmaia. E desmaia de um jeito tal que Pereira Gomes
carrega-o carinhosamente para além da linha de corner. E lá vem o
médico, e lá vem o massagista. E Chiquinho desmaiado. Domingos da Guia,
capitão do Flamengo, dono do futebol, reclama. O quíper só tinha um
minuto para ser socorrido e o desmaio de Chiquinho já se prolongava há
mais de três minutos. Repita-se que o jogo era na Gávea. Se fosse em São
Januário, o desmaio de Chiquinho podia até demorar mais um pouco. Mas
era na Gávea e Pereira Gomes resolve mandar bater o pênalte de qualquer
maneira.
E eis que Chiquinho volta a si. Pergunta onde está, passando a mão
pela cabeça, procurando relembrar-se das coisas e parece que se lembra
porque se levanta, cambaleando, e vai para o centro do gol. Pirilo, o
mesmo Pirilo, está a onze passos. Ajeita a bola mais uma vez,
prepara-se para o chute. Pereira Gomes leva o apito à boca, vai
soprá-lo, quando Chiquinho roda e se despluma no chão. Outro desmaio.
Pereira Gomes se assusta, corre para socorrê-lo novamente, carrega-o
nos braços feito uma criança, e Chiquinho pesava, inerte, porque
carregando-o, já trôpego, Pereira Gomes bufava. E lá está outra vez
Chiquinho de olhos fechados, no campo, estirado, imóvel, como morto,
atrás da linha de corner. O médico toma-lhe o pulso, o massagista
esfrega-lhe o ventre e Chiquinho de olhos fechados, a cabeça pendida.
O juiz Pereira Gomes não sabe o que fazer. Espera o outro minuto ou
conta os segundos que já passaram? Enquanto isso a torcida do Flamengo
se exaspera e vaia o juiz Pereira Gomes. Domingos da Guia vai para cima
dele. Seis minutos, seu juiz, seis minutos. E ouvindo as vaias, e
ouvindo Domingos da Guia que falava pouco mas quando falava era como a
própria sabedoria, o juiz Pereira Gomes decide-se de vez. O pênalte
tinha que ser batido, doesse em quem doesse. O Vasco que arranjasse
outro quíper. Florindo, metido a Domingos da Guia, apenas mais preto,
porem tão sóbrio quanto o Mestre, e por isso capitão do Vasco, é
avisado que não há mais espera, que com quíper ou sem quíper o pênalte
vai ser batido e já Florindo manda Figliola vestir a camisa de
Chiquinho.
E demora toda uma vida a cerimônia, complicadíssima, de mudança de
camisa. Chiquinho continua de olhos fechados. É preciso esticar-lhe
os braços, puxar-lhe a camisa pelo busto, pela cabeça, com cuidado, pois
quem sabe se ele está mesmo moribundo. Finalmente a operação se
completa. Chiquinho fica de busto nu e Figliola tira a camisa dele para
vestir a camisa de Chiquinho. A torcida se aquieta um pouco. Agora o
pênalte vai ser batido. Pirilo ajeita a bola mais uma vez. Pereira Gomes
aguarda apenas os últimos arremates do toilette de Figliola. O que
aplacava a impaciência da torcida do Flamengo era o sem jeito de
Figliola, que nem sabia vestir direito uma camisa de quíper. O garoto do
placar já preparava o número do gol do Flamengo.
Figliola já se vestiu de quíper, vai para debaixo dos três paus.
Pereira Gomes leva o apito à boca e na hora que vai apitar Chiquinho
aparece, ainda cambaleante, ainda passando a mão pela cabeca, nu da
cintura para cima. E Figliola despe a camisa que era de Chiquinho e
Chiquinho, mal podendo ter-se em pé, veste de quíper, que o quíper,
mesmo quase inconsciente, era ele. A torcida do Flamengo exige a
cobrança do pênalte já e já. Pereira Gomes faz-lhe a vontade. Manda
Figliola sair do gol, deixa Chiquinho só, cai não cai, que dava pena,
e apita, um apito forte, para todo mundo ouvir. Pirilo chuta de lado,
de leve, para marcar aquele gol não precisava caprichar. E foi o tiro
partir e foi Chiquinho saltar feito um gato e agarrar a bola. Estava
mais vivo do que nunca.
Flamengo 1×0 Vasco
Campeonato Carioca, 3º turno
Data: 5 de outubro de 1941
Local: Estádio da Gávea
Árbitro: Oscar Pereira Gomes
Gol: Pirilo 51′ do 2º tempo
Flamengo: Yustrich; Domingos e Newton; Jocelino, Volante e Artigas; Valido,
Zizinho, Pirilo, Jayme e Vevé.
Vasco: Chiquinho; Florindo e Oswaldo; Figliola, Zarzur e Dacunto; Alfredo II,
Moacyr, Villadoniga, González e Orlando.
Ocorrências, todas no 2º tempo:
37′ – Pênalti de Dacunto em Pirilo.
47′ – Pirilo cobra o pênalti e Chiquinho defende.
47′ – Figliola é expulso por reclamação.
49′ – Gol de Villadoniga anulado por impedimento inexistente.
51′ – Pirilo, impedido, marca o único gol do jogo.
55′ – Fim do jogo.
Fonte de consulta: A Noite, segunda-feira, 6 de outubro de 1941, pag. 9.