O Anjo Torto
Valdir Appel
Ele viajou em seu confortável Impala, levando um enteado e mais
dois garotos oriundos dos juvenis do Vasco, para a cidade serrana de
Cordeiro, distante aproximadamente 200 quilômetros do Rio de Janeiro,
para disputar um amistoso contra uma seleção local, e que
marcaria a sua estreia com a camisa da cruz de malta. No caminho,
fez discretas paradas em botecos de beira de estrada para molhar o papo
e limpar a poeira do gogó.
Ao chegar, foi recebido pelo centroavante Bianchini, que o conduziu à
residência do seu sogro. Disposto a impressionar, o anfitrião
mostrou uma garrafa de cachaça envelhecida em tonel de carvalho,
guardada a sete chaves, e que só seria aberta no dia em que
pisasse em sua residência uma das três celebridades que tanto
admirava: governador Carlos Lacerda, Pelé e Garrincha.
“Pois então, chegou a hora de abrí-la!”, disse o visitante
que, munido do copinho especial para doses, não se fez de rogado
e repetiu várias vezes a marvada. Concordou com o
anfitrião: a cachaça era realmente deliciosa! Porém,
Mané preocupou-se em permitir aos garotos que o acompanhavam
apenas o consumo de refrigerantes. Um barbeador elétrico foi
providenciado também, para o craque fazer a barba de alguns dias.
Já o ônibus do Vasco, que levava um time composto de alguns
titulares, juvenis e jogadores em teste, comandado pelo “Queixada”
Ademir Menezes, foi direto para o estádio. Nos vestiários,
a curiosidade e a expectativa pela estreia do ponta não
era só dos dirigentes e torcedores: os próprios jogadores,
principalmente os mais jovens, acompanhavam com interesse todos os
movimentos do ídolo. Ficaram surpresos, principalmente pelo fato
de ele vestir somente calção, meias e chuteiras,
além da camisa, desprezando ataduras e o suporte que todo atleta
usava.
Foi um sufoco para o time entrar em campo, todos queriam ficar
próximos do homem das pernas tortas. Não havia alambrados,
apenas uma mureta de madeira, separando o público dos jogadores.
Policiais fizeram um cordão de isolamento para que os dois times
chegassem ao centro do gramado. Mesmo depois de iniciado, o jogo foi
interrompido algumas vezes por causa da invasão de apaixonados
torcedores que queriam uma foto ou simplesmente tocar naquele que
já fora o maior ponta direita do mundo.
Na primeira bola que Garrincha recebeu, ele a dominou e parou em frente
ao marcador. Hipnotizou-o, ensaiou a saída, e arrancou para a
direita, sem a bola. O lateral o acompanhou. Mané voltou e
verificou que o ponta esquerda adversário recuara em socorro do
lateral, roubando a bola que ele havia deixado para trás.
A torcida explodiu numa vaia!
“Xi! Mexeram com o homem!”, comentou o meia vascaíno Paulo Dias
com os companheiros.
E como mexeram! Daí pra frente, foi um espetáculo, que
ele jamais repetiria com a camisa do Vasco: dribles, arrancadas,
passes perfeitos e um gol de falta, numa exibição
magistral durante aqueles inesquecíveis 90 minutos.
Por mais incrível que possa parecer, Mané Garrincha,
antes de se imortalizar com a camisa 7 do Botafogo, tentou a sorte
no Vasco da Gama. Uns dizem que ele não ficou por causa das
pernas tortas e de um desvio na coluna; outros, que ele não
levou chuteiras e por causa disso foi impedido de treinar.
Coube ao Vasco, em 1967, atendendo ao pedido de um grupo de jogadores
liderados pelo capitão Brito, a missão de tentar
recuperar a “alegria do povo”, já no ocaso da carreira. O
último clube de Mané fora o Corinthians, onde jogara
sem brilho.
Totalmente dependente da sua companheira Elza Soares, a única
pessoa que lhe foi fiel, varava as noites e madrugadas acompanhando
seus shows e bebendo em demasia. Mané chegava em São
Januário, bem cedo para os treinos, com os olhos tristes e
fundos, e revelando, no andar cansado e desanimado, sua
impotência para vencer os vícios. Praticava
exercícios leves que pouco ou nenhum resultado traziam ao
seu corpo debilitado pelo excesso de peso. Nós
percebíamos a sua boa vontade e a inutilidade dos seus
esforços.
Todos torciam por ele, mas ninguém acreditava mais no seu
futebol. O Vasco desistiu dele ou ele desistiu do Vasco? Nunca fiquei
sabendo. Mas, ele nos reservou uma surpresa. No ano seguinte, foi o
Flamengo quem lhe deu uma derradeira oportunidade. E foi justamente
contra o Vasco, que ele presenteou os torcedores e admiradores com o
seu último grande show.
Era uma quarta-feira, de noite estrelada, propícia para a
prática do futebol. O Maracanã, seu palco preferido,
estava decorado a caráter. Quase 90 mil pagantes assistiram,
incrédulos, suas arrancadas, sempre pela direita, em cima de
um impotente lateral esquerdo, Eberval, que pedia ajuda de Fontana e
Brito, que eram driblados em fila, provocando na plateia
momentos de puro êxtase.
Os locutores das rádios passavam tanta emoção e
vibração na narração daqueles momentos
materializados como um milagre, que milhares de torcedores sem ingresso,
que escutavam o jogo do lado de fora do Maracanã, colocaram
abaixo um dos seus portões. Aos empurrões,
alcançaram as ladeiras do estádio, pularam as catracas e
chegaram as arquibancadas para poder ver o que parecera (até
então!) improvável: a ressurreição de
Garrincha.
A metamorfose durou menos de 45 minutos. Seus joelhos sentiram as
jogadas mais duras da nossa zaga. Os torcedores, de pé,
ovacionaram sua saída de campo. Um público silencioso e
triste viu um segundo tempo sem graça, e o fim da magia deixar
pra sempre o maior estádio do mundo.
Foi a única vitória contra o nosso maior rival que eu
não comemorei.
Valdir Appel é escritor, colunista esportivo e ex-goleiro do
Vasco. No seu blog
Na Boca do Gol,
ele conta histórias dos bastidores da sua época de jogador.
Seu primeiro livro, também intitulado Na Boca do
Gol, reunindo suas melhores crônicas e ilustrado com
fotos inéditas,
pode ser adquirido on-line.