C. R. Vasco da Gama: Crônica: O Anjo Torto (Valdir Appel)

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C. R. Vasco da Gama: Crônica: O Anjo Torto (Valdir Appel)

C. R. Vasco da Gama: Crônica: O Anjo Torto (Valdir Appel)

O Anjo Torto

Valdir Appel

Vasco com Garrincha, 1967

Ele viajou em seu confortável Impala, levando um enteado e mais
dois garotos oriundos dos juvenis do Vasco, para a cidade serrana de
Cordeiro, distante aproximadamente 200 quilômetros do Rio de Janeiro,
para disputar um amistoso contra uma seleção local, e que
marcaria a sua estreia com a camisa da cruz de malta. No caminho,
fez discretas paradas em botecos de beira de estrada para molhar o papo
e limpar a poeira do gogó.

Ao chegar, foi recebido pelo centroavante Bianchini, que o conduziu à
residência do seu sogro. Disposto a impressionar, o anfitrião
mostrou uma garrafa de cachaça envelhecida em tonel de carvalho,
guardada a sete chaves, e que só seria aberta no dia em que
pisasse em sua residência uma das três celebridades que tanto
admirava: governador Carlos Lacerda, Pelé e Garrincha.

“Pois então, chegou a hora de abrí-la!”, disse o visitante
que, munido do copinho especial para doses, não se fez de rogado
e repetiu várias vezes a marvada. Concordou com o
anfitrião: a cachaça era realmente deliciosa! Porém,
Mané preocupou-se em permitir aos garotos que o acompanhavam
apenas o consumo de refrigerantes. Um barbeador elétrico foi
providenciado também, para o craque fazer a barba de alguns dias.

Já o ônibus do Vasco, que levava um time composto de alguns
titulares, juvenis e jogadores em teste, comandado pelo “Queixada”
Ademir Menezes, foi direto para o estádio. Nos vestiários,
a curiosidade e a expectativa pela estreia do ponta não
era só dos dirigentes e torcedores: os próprios jogadores,
principalmente os mais jovens, acompanhavam com interesse todos os
movimentos do ídolo. Ficaram surpresos, principalmente pelo fato
de ele vestir somente calção, meias e chuteiras,
além da camisa, desprezando ataduras e o suporte que todo atleta
usava.

Foi um sufoco para o time entrar em campo, todos queriam ficar
próximos do homem das pernas tortas. Não havia alambrados,
apenas uma mureta de madeira, separando o público dos jogadores.
Policiais fizeram um cordão de isolamento para que os dois times
chegassem ao centro do gramado. Mesmo depois de iniciado, o jogo foi
interrompido algumas vezes por causa da invasão de apaixonados
torcedores que queriam uma foto ou simplesmente tocar naquele que
já fora o maior ponta direita do mundo.

Na primeira bola que Garrincha recebeu, ele a dominou e parou em frente
ao marcador. Hipnotizou-o, ensaiou a saída, e arrancou para a
direita, sem a bola. O lateral o acompanhou. Mané voltou e
verificou que o ponta esquerda adversário recuara em socorro do
lateral, roubando a bola que ele havia deixado para trás.

A torcida explodiu numa vaia!

“Xi! Mexeram com o homem!”, comentou o meia vascaíno Paulo Dias
com os companheiros.

E como mexeram! Daí pra frente, foi um espetáculo, que
ele jamais repetiria com a camisa do Vasco: dribles, arrancadas,
passes perfeitos e um gol de falta, numa exibição
magistral durante aqueles inesquecíveis 90 minutos.

Por mais incrível que possa parecer, Mané Garrincha,
antes de se imortalizar com a camisa 7 do Botafogo, tentou a sorte
no Vasco da Gama. Uns dizem que ele não ficou por causa das
pernas tortas e de um desvio na coluna; outros, que ele não
levou chuteiras e por causa disso foi impedido de treinar.

Coube ao Vasco, em 1967, atendendo ao pedido de um grupo de jogadores
liderados pelo capitão Brito, a missão de tentar
recuperar a “alegria do povo”, já no ocaso da carreira. O
último clube de Mané fora o Corinthians, onde jogara
sem brilho.

Totalmente dependente da sua companheira Elza Soares, a única
pessoa que lhe foi fiel, varava as noites e madrugadas acompanhando
seus shows e bebendo em demasia. Mané chegava em São
Januário, bem cedo para os treinos, com os olhos tristes e
fundos, e revelando, no andar cansado e desanimado, sua
impotência para vencer os vícios. Praticava
exercícios leves que pouco ou nenhum resultado traziam ao
seu corpo debilitado pelo excesso de peso. Nós
percebíamos a sua boa vontade e a inutilidade dos seus
esforços.

Todos torciam por ele, mas ninguém acreditava mais no seu
futebol. O Vasco desistiu dele ou ele desistiu do Vasco? Nunca fiquei
sabendo. Mas, ele nos reservou uma surpresa. No ano seguinte, foi o
Flamengo quem lhe deu uma derradeira oportunidade. E foi justamente
contra o Vasco, que ele presenteou os torcedores e admiradores com o
seu último grande show.

Era uma quarta-feira, de noite estrelada, propícia para a
prática do futebol. O Maracanã, seu palco preferido,
estava decorado a caráter. Quase 90 mil pagantes assistiram,
incrédulos, suas arrancadas, sempre pela direita, em cima de
um impotente lateral esquerdo, Eberval, que pedia ajuda de Fontana e
Brito, que eram driblados em fila, provocando na plateia
momentos de puro êxtase.

Os locutores das rádios passavam tanta emoção e
vibração na narração daqueles momentos
materializados como um milagre, que milhares de torcedores sem ingresso,
que escutavam o jogo do lado de fora do Maracanã, colocaram
abaixo um dos seus portões. Aos empurrões,
alcançaram as ladeiras do estádio, pularam as catracas e
chegaram as arquibancadas para poder ver o que parecera (até
então!) improvável: a ressurreição de
Garrincha.

A metamorfose durou menos de 45 minutos. Seus joelhos sentiram as
jogadas mais duras da nossa zaga. Os torcedores, de pé,
ovacionaram sua saída de campo. Um público silencioso e
triste viu um segundo tempo sem graça, e o fim da magia deixar
pra sempre o maior estádio do mundo.

Foi a única vitória contra o nosso maior rival que eu
não comemorei.

Valdir Appel é escritor, colunista esportivo e ex-goleiro do
Vasco. No seu blog
Na Boca do Gol,
ele conta histórias dos bastidores da sua época de jogador.
Seu primeiro livro, também intitulado Na Boca do
Gol
, reunindo suas melhores crônicas e ilustrado com
fotos inéditas,

pode ser adquirido on-line
.

© 2005- , Valdir Appel.