A temporada de 2023 terminou, mas a relação entre Vasco e Gary Medel continuará no próximo ano. Com contrato até o final de 2024, o defensor está vivendo no Rio de Janeiro o que parece ser o último capítulo de uma carreira repleta de conquistas, idolatria e controvérsias. Aos 36 anos, o chileno teve que aprender a lidar com o temperamento para se tornar uma lenda nacional. Um pitbull domado.
O ge relata a trajetória de um dos maiores ídolos do futebol chileno, que se tornou uma figura importante na recuperação do Vasco no Campeonato Brasileiro. Medel conquistou a simpatia da torcida.
Gary (Lineker) Medel
O destino de Medel estava ligado ao futebol. Seu pai, Luis Medel, era um entusiasta do esporte. O varredor de ruas de La Palmilla, uma vila na região metropolitana de Santiago, se inspirou na Copa do Mundo de 1986 para nomear seu filho.
Luis se tornou fã de Gary Lineker, o atacante inglês daquela Copa, que marcou um dos gols mais bonitos do torneio na partida em que a Argentina eliminou a Inglaterra. Enquanto o mundo admirava Maradona, que marcou o icônico gol de mão naquele confronto, Luis se encantou com Gary, o artilheiro do Mundial.
Um ano depois, em 3 de agosto de 1987, quando sua esposa, Marisol Soto, deu à luz o segundo filho do casal, Luis registrou o menino como Gary Alexis Medel Soto.
Infância humilde
O lar na infância era a casa do avô. Ao observar as dificuldades enfrentadas por sua filha e genro para criar os dois filhos, Delfín Soto convidou-os para morarem com ele. Medel já revelou em diversas ocasiões que 30 pessoas viviam no local e compartilhavam um único banheiro.
“Gary é um exemplo de sacrifício, treinamento e superação das limitações. Ao contrário, ele se tornou alguém melhor. Ele é um exemplo para a nova geração do futebol”, ressaltou Luis María Bonini, ex-preparador físico da seleção chilena, à Chilevisión.
Em uma comunidade pobre, envolta pela violência, Medel tinha certeza de que “se não fosse jogador de futebol, hoje estaria envolvido com o tráfico de drogas”.
“Temos muitos amigos de infância que acabaram se envolvendo com o crime, tiveram problemas com drogas”, lembrou o amigo de infância, Héctor Suazo, à S7LProducciones.
Diante da dura realidade, como a falta de comida em casa, Gary usava o futebol como um escape: “Jogar futebol era incrível, uma paixão fascinante para ele”.
Medel passava todo o tempo livre no campo de terra próximo à sua casa. No clube do bairro, Sabino Aguad, o menino deu os primeiros passos no futebol, seguindo os passos de seu pai. Luis também jogava no mesmo time – o atacante não era talentoso, mas se destacava pela determinação. Se Gary não herdou a habilidade de seu pai, aprendeu com Seu Luis a se dedicar ao jogo.
Foi lá que, aos 9 anos, Medel foi descoberto pelo olheiro Alfonso Garcés, que o levou para a Universidad Católica. O menino começou a cruzar toda Santiago para treinar. Como ainda era uma criança, o pai precisava acompanhá-lo e tinha dificuldades para pagar as passagens de ônibus.
“Gary chamou minha atenção por suas qualidades físicas e de futebol com tão pouca idade. Para mim, ele mudou em maturidade e na vida, mas continua jogando como o vi no primeiro dia”, comentou Garcés em entrevista ao ge em 2015.
“Medel é agressivo, mas não é mal”
O temperamento, ao mesmo tempo que fez Medel ser apreciado pela torcida, também lhe causou problemas ao longo da carreira. A personalidade forte é uma marca desde os primeiros anos como atleta.
“Ele sempre foi impulsivo. Muitas vezes isso o prejudicou, mas também o ajudou a chegar onde está. Agora ele lida melhor com isso”, afirmou o amigo de infância, Francisco Fuentes, à TVN Chile.
Em 2004, aos 15 anos, Gary foi nomeado capitão da equipe sub-16 da La U. Dois anos depois, estreou na equipe profissional e acumulou convocações para as seleções de base do Chile. Em 2017, participou do Mundial Sub-20, quando enfrentou a primeira polêmica de sua carreira.
No Estádio Nacional de Toronto, no Canadá, o Chile enfrentou a Argentina na semifinal do torneio. Medel foi expulso na derrota por 3 a 0, e a partida terminou em confusão. Os chilenos confrontaram a arbitragem e a polícia respondeu com violência desproporcional. Pelo menos nove jogadores foram detidos e levados algemados do estádio – incluindo Gary.
No ano seguinte, já pela seleção principal, Medel venceu a Argentina por 1 a 0 no Estádio Nacional de Santiago, salvando um chute de Messi em cima da linha nos minutos finais do jogo.
“Medel é agressivo, mas não é uma pessoa má. Sua dedicação é única, desde a infância ele sempre se entregou em campo, mesmo lesionado. Ele é intenso quando necessário. Ele é um tipo raro. Pessoalmente, não é agressivo como em campo, até mesmo um pouco tímido em alguns aspectos. No bom sentido da palavra, ele tem essa faceta do seu apelido”, enfatizou Alfonso Garcés.
O apelido em questão é “pitbull”, com o qual ele foi batizado aos 18 anos. Apesar da expressão dura, Medel é uma pessoa tranquila: “Um homem que não tem inimigos, porque todo o Chile o ama”. Ainda na La U, ele trabalhou com profissionais do clube para controlar seu temperamento.
“Minha característica era ter uma personalidade forte, mas percebi que minha impulsividade não era benéfica para mim e para a equipe”, reconheceu Gary Medel.
Em 2007, em sua estreia na Primeira Divisão pela Universidad Católica, Medel fez um dos gols mais bonitos de sua carreira. Ele balançou as redes duas vezes na vitória por 2 a 1 sobre o rival Universidad de Chile, sendo o segundo um golaço (veja no vídeo acima).
A mudança em seu comportamento foi influenciada diretamente pela família. O jogador do Vasco encontrou seu primeiro amor aos 17 anos e, pouco depois, se tornou pai de gêmeos. Ele quase desistiu do futebol para trabalhar e sustentar os filhos, mas seus pais não permitiram. “Ficamos na fila para receber mercadorias e leite”, recordou Medel, que também afirmou:
“Em uma temporada em que eu estava mal, nasceram meus filhos. Então decidi focar nisso.”
O jogador foi diminuindo o ritmo aos poucos, mas acumulou controvérsias na carreira. Em março de 2015, por exemplo, em um amistoso entre Brasil e Chile na Inglaterra, Medel pisou em Neymar. O brasileiro reclamou após a partida, e o chileno disse que Neymar “armou um teatro”.
Durante a Copa América de 2019, ele brigou e provocou a expulsão de Messi na Neo Química Arena, estádio do Corinthians. Ele também foi expulso na ocasião.
Maradona ficou encantado com Medel
O chileno chegou ao Boca Juniors, da Argentina, em 2010 e se destacou em um clássico contra o River Plate, marcando dois gols na vitória por 2 a 0. No final, foi expulso. Sua atuação lhe rendeu elogios de Maradona: “Se Medel fosse argentino, já estaria convocado para a seleção”, disse na época o maior ídolo do futebol argentino.
Medel partiu para a Europa e também se tornou um ícone por lá. Titular por onde passou, Medel foi uma peça importante para os técnicos com quem trabalhou, sempre disponível para jogar em várias posições. Na Itália, chegou a ser comparado a Zidane.
“É difícil não se encantar por Gary Medel. Ele é o tipo de jogador que você sabe que não irá te decepcionar. Enquanto existirem jogadores como Medel, o futebol continuará existindo”, publicou em 2017 o site oficial da Inter de Milão.
Aos 36 anos, Medel nunca deixou de atuar em alto nível. O segredo está em seu comprometimento. Em qualquer situação, bom ou ruim, o chileno quer estar em campo. Foi o que aconteceu recentemente pelo Vasco, quando acelerou o tratamento de um edema na coxa para participar da última rodada do Brasileirão, garantindo a permanência do time na Série A.
“Gary Medel é um ícone nacional, um símbolo, ultrapassou as fronteiras do futebol”, resumiu o treinador chileno Jorge Pellicer.
Série de controvérsias
Explosivo em campo, Medel também se envolveu em polêmicas fora dele. Em outubro de 2007, por exemplo, foi detido em Santiago por dirigir embriagado e sem habilitação. Dois anos depois, em janeiro de 2009, seu carro capotou voltando de Viña Del Mar para Santiago. Resgatado semi-inconsciente, ele teve politraumatismo.
No mesmo ano, um mês depois, outra controvérsia. Gary organizou uma festa em seu apartamento, de onde uma jovem de 18 anos caiu da sacada do nono andar e morreu. O jogador do Vasco não foi indiciado. Em 2011, ele se envolveu em uma briga de bar pouco antes de um amistoso contra o Paraguai. No ano seguinte, ameaçou um motorista no estacionamento de um supermercado e foi levado a uma delegacia.
Ainda em 2012, foi alvo de uma denúncia de uma jornalista no aeroporto de Santiago. Medel foi retirado do avião por oficiais, mas horas depois foi liberado por falta de provas, segundo a polícia.
Um Medel mais tranquilo
Gary Medel chegou ao Brasil em julho para atuar pelo Vasco e deixar para trás uma memória ruim que tem no país. Em 24 de maio de 2014, apenas duas semanas após viajar do Chile para Belo Horizonte para se preparar para a Copa do Mundo, o volante recebeu a notícia de que seu avô, Delfín Soto, havia falecido devido a um câncer no estômago.
Medel foi autorizado a comparecer ao funeral para se despedir do homem que acolheu sua família nos momentos mais difíceis. O meio-campista passou horas ao lado do caixão do avô.
A família sempre ocupou um lugar importante na vida de Medel, mas ele veio ao Rio sozinho. O zagueiro foi casado duas vezes. Do primeiro casamento, com Alejandra Rodriguez, nasceram os gêmeos Alejandro Isaac e Gary Stevens. No segundo casamento, com Cristina Morales, o chileno teve mais dois filhos, um menino e uma menina. O relacionamento terminou em março deste ano, supostamente devido a uma traição do atleta, de acordo com a imprensa chilena. Ele tem outra filha, Agustina, fora do primeiro casamento.
Mas Medel não está sozinho no Brasil. O pitbull tem a companhia de seus dois cães, da raça chihuahua. Ele fala sobre isso no vídeo abaixo:
No Rio de Janeiro, ele está vivendo talvez o período mais tranquilo de sua vida, longe de polêmicas. A cena mais incomum pode ter sido a provocação a Diego Costa no clássico contra o Botafogo.
No segundo tempo do clássico, Medel e Diego Costa trocaram provocações, e o zagueiro chileno reagiu de forma inusitada: tampou o nariz com uma mão e com a outra abanou, como se estivesse sentindo um cheiro ruim (veja no vídeo abaixo). Ambos receberam cartão amarelo.
Fora de campo, Medel se resguardou para ajudar o Vasco. Colocou o objetivo do clube à frente de tudo e encerrou o ano em alta. Recebeu a braçadeira de capitão e motivou o grupo rumo à permanência.
“Cheguei quando tínhamos apenas nove pontos, sem treinador, e quando vinham falar comigo, eu dizia que falaria em campo. Não dava entrevistas. Cheguei com o objetivo bem claro. Lutei, trabalhei junto com meus companheiros e alcançamos o objetivo”, disse esta semana à VascoTV.
“Sempre dou o melhor de mim. Posso cometer erros, é claro, mas sempre dou o meu máximo por meus companheiros e pelo clube, que é o mais importante”, concluiu Gary Medel.
Fonte: ge