Com 83 páginas, o documento expõe que a Leadenhall recorreu ao judiciário acusando a 777 de oferecer ativos no valor total de US$ 350 milhões (aproximadamente R$ 1,8 bilhão) como garantia para empréstimo, sendo que tais bens não lhes pertenciam ou já haviam sido dados em garantia a outras instituições. A ação judicial arquivada em Nova Iorque denuncia fraudes contábeis e alega a possível existência de um esquema de pirâmide, levantando questionamentos sobre a saúde financeira da empresa que adquiriu o Vasco em 2022.
— Wander já confessou diversas e substanciais violações do contrato entre as partes. Agora, a questão que se coloca é se a Leadenhall conseguirá recuperar os milhões de dólares em prejuízos causados por um “castelo de cartas” prestes a desabar — declarou a Leadenhall no documento judicial.
Um dos pontos centrais da denúncia se relaciona com o processo decisório da 777. Conforme a empresa britânica, o grupo atualmente à frente do Vasco está sob controle de outra empresa norte-americana, a A-CAP. Segundo a ação, isso ocorre porque a empresa de Josh Wander deve mais de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10,1 bilhões) à A-CAP.
A A-CAP negou ao periódico britânico “Financial Times” que controle a 777 e classificou as acusações como “infundadas”, considerando-as “uma tentativa desesperada da Leadenhall de obter pagamento da A-CAP e prejudicar os segurados da mesma”. Procurada pelo ge, a 777 informou que não irá se pronunciar.
Denúncia anônima por e-mail
A narrativa teve início quando a Leadenhall e a 777 firmaram um acordo em 7 de maio de 2021. Conforme estabelecido no contrato, o fundo britânico ofereceu uma linha de crédito ao grupo americano de maio de 2021 a setembro de 2024.
Segundo o pacto, a 777 teria permissão para solicitar empréstimos à Leadenhall durante esse intervalo de tempo, comprometendo-se a liquidar o montante total ao fim dos 3 anos e meio. O contrato determinava que a empresa americana teria que oferecer ativos como garantia equivalente aos empréstimos, estando obrigada a atualizar regularmente a situação dessas garantias para os britânicos, além de fazê-lo a cada novo empréstimo obtido com a Leadenhall.
O problema surgiu quando a Leadenhall descobriu que a 777 havia oferecido como garantia ativos no valor total de US$ 350 milhões que não lhe pertenciam ou que já haviam sido dados em garantia em outro empréstimo, o que é vedado. A investigação teve início após um e-mail anônimo recebido em 19 de setembro de 2022, 17 dias após a 777 assumir a SAF do Vasco. O conteúdo da mensagem alertava:
— Os ativos dados como garantia pela SuttonPark (subsidiária da 777) não existem. Josh Wander nunca os adquiriu ou já os havia oferecido como garantia para outro credor. Seu investimento está em sério risco. As ações dele são criminosas.
No entanto, a Leadenhall esperou mais de um ano e meio até acionar judicialmente Josh Wander e associados. Durante esse período, o fundo se reuniu algumas vezes com a 777 em busca de soluções, angariando evidências contra o grupo norte-americano – as conversas foram gravadas com a permissão de Wander.
Entre o recebimento do e-mail e a protocolização da ação, um ponto crucial aconteceu em março de 2023. Executivos da Credigy, empresa que também concedeu um empréstimo à 777, estiveram na sede da Leadenhall em Londres.
O assunto central da reunião foi o grupo que adquiriu o Vasco e, nos dias que se seguiram, a Credigy enviou um inventário dos ativos que a 777 havia oferecido como garantia. Ao analisar a lista, a Leadenhall constatou que 1.600 ativos, somando um total de US$ 185 milhões, haviam sido cedidos como garantia para ambas as empresas.
Josh Wander alega “falha no sistema”
Durante uma das reuniões com a Leadenhall, Josh Wander declarou que utilizou a garantia em dois empréstimos devido a uma falha no sistema da 777. Na reunião de 28 de março de 2023, ele fez compromissos com o fundo britânico, prometendo angariar fundos por meio de uma “possível venda de parte dos ativos de futebol da 777”. Na conversa de 3 de abril do ano anterior, Wander acrescentou:
— Faremos todo o possível para alienar negócios, conseguir capital e obter empréstimos com nosso principal credor (A-CAP) para resolver o impasse.
Ação descreve a 777 como “marionete”
No processo, a Leadenhall descreve a 777 como dependente essencialmente do financiamento da A-CAP, empresa americana de propriedade do empresário Kenneth King, também réu no caso. Por conseguinte, de acordo com o documento, King é quem controla atualmente a empresa proprietária do futebol do Vasco.
A Leadenhall rotula a 777 de “marionete” sob o controle da A-CAP, retratando Kenneth King como o “Mágico de Oz por trás da cortina da 777 Partners”.
Em 29 de março de 2024, houve um esboço de acordo entre Leadenhall e 777 para que os americanos quitassem suas dívidas com os britânicos por meio de parcelas em datas predefinidas. Contudo, o combinado foi vetado pela A-CAP. Durante uma reunião em 2 de abril, segundo o processo, ao ser informado de que atualmente a A-CAP controla a 777, Josh Wander respondeu da seguinte forma:
— Na prática, você está correto. Eles (A-CAP) guiam o que assinamos, pois detêm o poder financeiro. E precisamos manter a empresa operante para solucionar nossos problemas e cumprir nossas obrigações.
Conforme a ação, ao longo do último ano, a 777 recorreu aos fundos da A-CAP até para honrar os salários de seus funcionários. Por conseguinte, todas as decisões relevantes precisam ser aprovadas pelo fundo de Kenneth King, que recebe atualizações constantes sobre os planos do grupo que gerencia o Vasco.
Possível esquema de pirâmide
A Leadenhall caracteriza as operações da 777 como um possível esquema de pirâmide, alegando que a empresa de Josh Wander não possui capital disponível para investimentos. O fundo argumenta que a tática consiste em movimentar valores de um negócio para outro dentro da própria empresa, sem entrada de novos recursos. Segundo a Leadenhall, a 777 abre linhas de crédito com seguradoras e faz circular o dinheiro entre as empresas do grupo.
— Embora a 777 Partners, muitas de suas operações e vários de seus clubes de futebol profissional estejam altamente endividados e inadimplentes, a estratégia de Wander tem sido de expansão contínua – utilizando dívidas para adquirir novos ativos que podem, então, ser utilizados como garantia para novos empréstimos. No entanto, a empresa falha em honrar os pagamentos no prazo estabelecido, persistindo em um ciclo de “tirar de um para pagar o outro” — cita um trecho da ação.
Outro revés para as finanças da 777 ocorreu em janeiro deste ano, quando a Autoridade Monetária de Bermudas (paraíso fiscal no Caribe) bloqueou US$ 2,2 bilhões pertencentes à 777 Re, resseguradora do grupo que comprou o Vasco e cuja sede está no país caribenho. A agência de classificação de risco AM Best, especializada em seguradoras, rebaixou a nota da empresa de B para C-.
“Projeções irreais” de desempenho dos clubes
Em partes do processo, a Leadenhall menciona os prejuízos contínuos dos clubes de futebol geridos pela 777 ao redor do mundo. O documento reproduz declarações de Josh Wander ao “Financial Times” em 31 de agosto de 2023, quando afirmou que o objetivo final seria deixar de vender produtos simples, como cachorro-quente ou cerveja, para os torcedores, e passar a oferecer seguros ou serviços financeiros.
O Vasco é citado uma vez na ação, quando o fundo britânico argumenta que as projeções financeiras da 777 para seus clubes são fantasiosas. Além do Vasco, a empresa também gerencia o Genoa (Itália), o Standard Liège (Bélgica), o Red Star (França), o Melbourne Victory (Austrália) e o Hertha Berlim (Alemanha), além de possuir uma participação minoritária no Sevilla (Espanha). O grupo possui um acordo para adquirir o Everton (Inglaterra), mas o negócio ainda não foi concretizado.
— As garantias oferecidas pela 777 para manter a operação do Genoa são baseadas em projeções irrealistas de crescimento em todas as fontes de receita e redução das despesas operacionais, apesar do declínio iminente da maior fonte de receita do Genoa, proveniente dos direitos de televisão. A 777 Partners também apresentou projeções financeiras para outros clubes, incluindo Standard Liège, Hertha e Vasco da Gama, prevendo desempenhos e participações em ligas europeias altamente improváveis — aponta a ação da Leadenhall.
Situação atual no Vasco
No Vasco, a 777 está em dia com suas obrigações financeiras. Em outubro de 2023, houve um leve atraso de alguns dias no pagamento de R$ 110 milhões.
O maior aporte, de R$ 270 milhões, está previsto para setembro deste ano. Preocupado com as notícias relativas à saúde financeira da 777, o departamento jurídico do clube enviou uma notificação à empresa exigindo garantias de que o pagamento será realizado na data acordada.
No ano de 2023, de acordo com o balanço divulgado no último dia 30, a SAF do Vasco registrou um prejuízo de R$ 123 milhões.
Fonte: ge