No ano de 1923, após percorrer sete anos formando sua equipe, competindo nas divisões inferiores e ligas de acesso do futebol carioca, o Vasco fez sua entrada na elite, ao ser campeão carioca pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) com um desempenho de 11 vitórias, dois empates e uma derrota. O time contava com jogadores negros, operários, de origem humilde e diversas condições sociais, em uma representação incomum para a época em que o futebol era dominado pela elite.
Esse contexto ocorria em meio a um cenário de racismo explícito e preconceito social no país. Por exemplo, a Lei Áurea, que oficializou o fim da escravidão no Brasil, havia sido decretada 35 anos antes. No estatuto da LMDT de 1917, eram proibidos atletas com “profissões degradantes que permitissem gorjetas”, analfabetos e aqueles considerados “abaixo do nível moral exigido” pelo Conselho Superior, “ocupantes de cargo, profissão ou emprego em desalinho com o moralismo necessário ao amadorismo esportivo”.
Nesse contexto, o time formado por Nelson, Mingote, Leitão, Arthur, Bolão, Nicolino, Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy, Negrito, Claudio, Adão, Nolasco, Pires e Russo, sob a liderança do técnico uruguaio Ramón Platero, ficou conhecido como os “Camisas Negras”, e posteriormente seria peça-chave na “Resposta Histórica” no ano seguinte.
Em 1924, América, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Bangu criaram a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) e se organizaram para estabelecer um novo campeonato. Convidado a se filiar, o Vasco efetuou a solicitação e inscreveu seus atletas junto à comissão organizadora da entidade, a qual requisitava informações sobre empregos atuais e anteriores. A reação à solicitação vascaína veio com a exigência de exclusão de 12 atletas do elenco, incluindo negros, operários e aqueles de origem social e profissional humilde. Bolão, Leitão, Brilhante, Arthur, Cecy, Negrito e Russinho foram os sete nomes titulares (outros cinco suplentes completavam a lista) excluídos.
De acordo com o Centro de Memória do Vasco, o então presidente José Augusto Prestes tentou negociar com a AMEA sem excluir os atletas, porém sem sucesso. Em 7 de abril de 2024, redigiu o ofício 261, uma resposta a Arnaldo Guinle, presidente da AMEA, rejeitando a exclusão dos atletas e abrindo mão da filiação — e da participação no campeonato.
Confira um trecho final da “Resposta Histórica”, reproduzida na íntegra ao final desta matéria:
“Em relação à eliminação de doze jogadores de nossas equipes, a Diretoria do C.R. Vasco da Gama decidiu por unanimidade não aceitar, por discordar do processo pelo qual foi conduzida a investigação das situações sociais de nossos associados, investigação realizada por um tribunal no qual não tiveram representação ou defesa. […] seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, em prol de entrar na A.M.E.A., alguns daqueles que batalharam para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quase todos brasileiros, no início de suas carreiras, e o ato público que poderia manchá-los, nunca será praticado com o apoio daqueles que dirigem a instituição que os acolheu, nem sob o estandarte que eles com tanto valor glorificaram.
Diante disso, comunicamos que desistimos de integrar a A.M.E.A.”
Após a divulgação da resposta, a associação respondeu expressando a expectativa de que o Vasco formasse equipes “genuinamente portuguesas”, mencionando uma “nobre raça secular”.
No mesmo ano, o Conselho Deliberativo do clube aprovou um empréstimo para a construção do estádio de São Januário, uma necessidade estrutural que também fazia parte das dificuldades enfrentadas pelo Vasco. Em termos de competição, o clube retornaria à Liga Metropolitana, que havia se tornado um campeonato secundário. Nesse episódio, o Vasco marcaria um importante capítulo na luta antirracista e contra o preconceito no futebol, um legado lembrado até os dias de hoje, do campo às músicas entoadas pelas arquibancadas.
Vasco promove mostra
No centenário da “Resposta Histórica”, o Vasco organizou uma série de iniciativas de celebração, tanto dentro quanto fora do clube. A primeira delas foi o lançamento de uma linha de camisetas em parceria com a marca Chico Rei. Os quatro modelos foram apresentados na última terça-feira e terão sua arrecadação revertida para o Centro de Memória do clube.
O Centro de Memória do Vasco também lançou um acervo digital com mais de 30 mil páginas (documentos e publicações internas e externas) e seis mil fotos na última sexta-feira, incluindo registros das primeiras décadas de história do clube. Clique aqui para acessar o acervo.
A principal ação está marcada para hoje, com a inauguração da exposição “Centenário da Resposta Histórica: Determinação para Combater”. Após a cerimônia voltada para convidados, a mostra ficará em exibição no Espaço Experiência do clube, em São Januário, com abertura de terça a domingo. Os visitantes terão a oportunidade de visualizar uma versão em papel do documento original, além de outros documentos e atas da época.
Confira a íntegra da ‘Resposta Histórica’ do Vasco:
Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Ofício No 261
Exmo. Sr. Dr. Arnaldo Guinle,
Excelentíssimo Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela Imprensa, tomadas em reunião ocorrida ontem pelos altos poderes da Associação que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama em uma situação de desvantagem inexplicável, que não se justifica nem pela precariedade de nosso campo, nem pela simplicidade de nossa sede, nem mesmo pela condição modesta de muitos de nossos associados.
Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da A.M.E.A., e a maneira como será exercido o direito de discussão e voto, bem como as futuras classificações, nos obrigam a manifestar nosso repúdio às mencionadas resoluções.
Em relação à eliminação de doze jogadores de nossas equipes, a Direção do C.R. Vasco da Gama, por decisão unânime, optou por não aceitar, já que discordava do procedimento adotado na investigação das condições sociais de nossos associados, investigação conduzida em um tribunal no qual não tiveram representação ou defesa.
Estamos convictos de que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato indigno de nossa parte sacrificar, em prol da filiação à A.M.E.A., alguns daqueles que lutaram para que alcançássemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
Esses doze jogadores, jovens, quase todos brasileiros, no início de suas carreiras, e o ato público que poderia denegrir suas imagens, jamais será concretizado com o apoio dos que gerem a instituição que os acolheu, tampouco sob a bandeira que eles tão bravamente enalteceram com glórias.
Por essas razões, comunicamos a V. Exa. nossa desistência em participar da A.M.E.A.
Solicitamos a V. Exa. e aceitação de nossas sinceras considerações e agradecimentos.
Atenciosamente,
José Augusto Prestes
Presidente
Fonte: O Globo