Vasco integra equipe técnica com profissional de psicologia na primeirona

Anteriormente considerado um assunto delicado, a saúde mental dos jogadores de futebol se tornou um tema crucial nos dias atuais. Nos últimos meses, jogadores de alto nível, como o atacante Richarlison, e ex-jogadores, como Ronaldo Fenômeno, enfatizaram a relevância do trabalho de psicólogos em suas vidas e carreiras.

Além de sessões particulares, esses profissionais também fazem parte da equipe técnica de clubes. Entre os 20 times da Série A do Brasileirão, 13 contam com especialistas contratados nessa área. O São Paulo mantém o setor, mas está em busca de um novo profissional.

Times da Série A com psicólogos na equipe técnica

Fonte: ge

*Michele Rios já estava no clube. Patrício Morales se juntou à comissão técnica de Gabriel Milito.

O papel da psicologia nas equipes técnicas tem ganhado destaque com o tempo. Como explicado por Andreia Cardoso, especialista em Psicologia do Esporte voltada para a alta performance, existem duas abordagens:

Os profissionais trabalham para “aumentar o rendimento esportivo dos atletas” e também para auxiliar, apoiar e acolher os jogadores individualmente, principalmente no contexto do futebol.

– O psicólogo inserido nos clubes participa da rotina de treinos. Ele deve ter espaço para dialogar e explicar sua área de atuação e sua forma de trabalho. A ideia é fazer com que tanto a equipe técnica quanto os atletas vejam isso como mais uma ferramenta de apoio para a performance.

A presença desses profissionais nas comissões técnicas é um fenômeno relativamente recente e não tão comum. Cardoso ressalta que cuidar da saúde mental dos atletas é um complemento ao trabalho realizado, representando uma ferramenta para alcançar a excelência, assim como a fisiologia, a fisioterapia e a preparação física.

No entanto, o lugar da psicologia no futebol ainda não é totalmente claro. Fernando Diniz, um dos principais técnicos do futebol brasileiro e um dos expoentes da área, também aborda o tema abertamente.

Diniz destaca a importância da psicologia no futebol

Formado em Psicologia, o treinador enfatiza a relevância do trabalho nos clubes, mas acredita que o essencial deve ser feito pelos atletas fora do ambiente diário do CT.

– Eu considero muito importante, deve ser algo mais profundo e tratado com seriedade. Talvez o trabalho do psicólogo no clube de futebol seja identificar o problema e encaminhar. Acho muito difícil o psicólogo do clube realizar a terapia. Penso que ele deve oferecer um primeiro suporte e depois encaminhar para espaços fora do clube, onde o jogador possa se desenvolver com mais profundidade.

Muitas pessoas ainda precisam superar os preconceitos que persistem no futebol, ainda muito presentes, sobre os jogadores aceitarem passar por terapia para se reorganizarem emocionalmente. Isso traria benefícios significativos.

— Fernando Diniz

Entre os clubes que não possuem psicólogos contratados para a comissão técnica, existem diferentes abordagens para cuidar da saúde mental dos atletas.

No Flamengo, por exemplo, não há um profissional presente diariamente, mas o clube tem psicólogos parceiros – contratados como prestadores de serviço – para os quais encaminha os jogadores. Um caso recente ocorreu com Michael, atualmente no Al Hilal.

O processo se inicia no departamento médico. Quando os profissionais identificam alguma demanda por parte dos jogadores, eles acionam esse prestador para o atendimento.

O São Paulo enfrenta uma situação um pouco distinta. Embora tenha o setor destinado à psicologia, o clube, que perdeu sua profissional para o Corinthians no início do ano, ainda busca um novo psicólogo. Internamente, o Tricolor considera o setor relevante e destaca a ajuda que Alisson recebeu em 2023 para superar um quadro de depressão como exemplo.

O CEO do Fortaleza, Marcelo Paz, destaca a presença do psicólogo no futebol como “muito importante”, tanto quanto em qualquer outro setor da sociedade. Ele salienta que, devido à exposição, é crucial ter alguém para auxiliar os jogadores a lidar com as pressões dentro do elenco.

Segundo Paz, o psicólogo que trabalha no Leão do Pici acompanha diariamente todas as atividades, além de oferecer atendimento individual aos jogadores, cujas identidades são protegidas por questões éticas.

O clube vivenciou recentemente um episódio marcante no atentado ao ônibus após uma partida contra o Sport pela Copa do Nordeste. O dirigente destaca como o profissional atuou para auxiliar os atletas e as famílias após o ocorrido.

– Nosso psicólogo ficou disponível para auxiliar não apenas os atletas, mas também as famílias. Para ajudar a lidar com essa situação traumática e manter o bem-estar, a harmonia, a alegria de trabalhar e a performance. Porque no futebol somos cobrados constantemente pela performance e, mesmo com o acidente, isso não mudou.

O diretor de futebol do Fluminense, Paulo Angioni, vai além. Para o dirigente, todos os clubes já deveriam dispor de uma área dedicada à psiquiatria, visando fornecer um atendimento mais completo, integrando as duas vertentes da saúde mental.

Essa foi a iniciativa adotada recentemente pelo Vasco. O clube criou um “Núcleo de Psicoterapia Integrada” que inclui não apenas um psicólogo, mas também um psiquiatra. A inspiração vem de práticas adotadas por equipes da NFL, principal liga de futebol americano dos Estados Unidos.

Atuação dos jogadores

Segundo o atacante André Felipe, recém-contratado pelo América-RJ e com passagens por grandes clubes da Série A do Brasileirão, o acompanhamento psicológico é essencial na carreira de um atleta de alto nível.

Ele enfrentou um período complicado ao sair do Santos, em 2010, e se transferir para o Dínamo de Kiev, na Ucrânia. Ao se deparar com um novo futebol e uma nova cultura, ele buscou a terapia.

– A importância nos dias de hoje é ainda maior devido às redes sociais e à exposição que geram. As pessoas comentam em tempo real e parecem que trazem ódio. Todos os jogadores precisam se blindar disso. É fácil acreditar que a avaliação nas redes sociais é real e esquecer do seu próprio valor, da sua luta, do seu trabalho diário.

O atleta de alto desempenho precisa estar bem mentalmente. Este é um dos pilares. Não adianta estar bem fisicamente e mal psicologicamente.

— André Felipe

Há clubes que chamam psicólogos para atendimentos específicos em momentos de maior pressão, seja na luta contra o rebaixamento ou por um título. André, no entanto, ressalta a importância de um trabalho contínuo.

– Muitas pessoas não percebem que o atleta não está bem em casa e isso acaba afetando seu desempenho. Ter um psicólogo que percebe isso e conversa com o jogador é muito importante. Todos os clubes deveriam entender que o atleta não é uma máquina.

O jogador de futebol é 80% mental. É visível que alguns atletas, quando estão confiantes, se tornam outros jogadores. Ninguém deixa de saber jogar. O psicólogo ajuda a equilibrar o lado físico com o mental.

— André Felipe

Momento emocionante na conquista da Libertadores

O Fluminense é um dos clubes que contam com um psicólogo em sua equipe técnica. Emily Gonçalves ganhou destaque após um episódio na final da Conmebol Libertadores de 2023. Ainda no campo, minutos após a conquista do título, Jhon Arias abraçou a psicóloga e expressou gratidão pelo trabalho no clube.

– Minha avó queria que eu estivesse aqui, e eu estou feliz. Então é pelo seu pai, pela minha avó… Estamos na história e sei que falta ainda. Obrigado por tudo. Você me faz ser o que eu sou hoje.

Emily trabalha com o elenco profissional do Tricolor desde 2018, mas já estava no clube antes para auxiliar no desenvolvimento dos jogadores nas categorias de base, em Xerém.

Enquanto parte da equipe técnica, o trabalho da psicóloga é diário e bem distinto da abordagem clínica realizada em consultório. Ela está presente no cotidiano do elenco, sendo vista como parte integrante do grupo de trabalho.

Diariamente, os jogadores respondem a um questionário sobre saúde, que gera um relatório para os profissionais. Com base nesses dados, ela analisa e discute com os demais departamentos para indicar possíveis intervenções.

– Dependendo da situação, quando identificam alguma melhoria necessária, temos um plano de ação para ajudar a desenvolver alguma habilidade, superar alguma dificuldade ou lidar com alguma situação adversa, seja interna ou externa – explica Emily.

A condução diária se baseia em acolher e entender como o jogador se sente, mais do que focar nas deficiências. É mais sobre acolhimento do que abordagem de questões desagradáveis.

— Emily Gonçalves

Em entrevista ao ge, Emily destaca a importância da continuidade para o progresso do trabalho de um psicólogo dentro de um clube de futebol, algo que não seria possível com intervenções pontuais.

O foco do atendimento ao grupo de atletas é garantir que saibam lidar bem com as pressões e as cobranças, compreendam seus próprios limites e consigam interpretar corretamente as mensagens transmitidas no clube.

– Por exemplo, se Diniz passa uma informação em uma reunião, eu estou atenta ao que ele tenta transmitir, e o jogador pode interpretar de maneira equivocada. Faço-o refletir, questionando: “O que você entendeu disso?” Então, quando estamos juntos, há mais chances de facilitar a compreensão daquela mensagem e contribuir para o progresso daquele atleta.

Com a presença do psicólogo no dia a dia e integrado à equipe técnica, a saúde mental ganha espaço nos clubes. Assim como em outras esferas da sociedade, a busca por um equilíbrio mental deixa de ser um tabu para se tornar um fator fundamental na evolução dos atletas.

Fonte: ge